sexta-feira, 20 de abril de 2012

A SAGA DO FAMANAZ CAMALEÃO E O FUTEBOL DE BRANCO E PRETO, de Antônio Carlos Freitas


Um Conto pra lá de especial, quando lembramos daqueles que marcaram nossas vidas. Além de tudo, para os amantes do futebol moleque, sem preconceitos, e com muita garra! Maiores informações sobre esse autor ourissadíssimo nowww.historiasdoblacktie.blogspot.com.

Aqui onde se dá o grande dérbi anual, era uma lagoa seca. Na época das águas, nós biribanos íamos nadar e brincar de bunda-canastra na lama. Na época da seca, o terreno ficava feito uma capoeira brejada, os cururus e as pererecas como por encanto sumiam, então as pedras serviam de balizas e a pelota era o nosso fascinante brinquedo, razão da nossa felicidade molecoreba. O futebol sempre uniu as nossas almas. À parte, os perronhas que já nasceram com a vocação pra beques-de-usinas e sequer sabem bater picadinho, e quando chutam metem a bola no fotógrafo, todos nós outros sempre soubemos que a bola tem de ser tratada com carinho, e o futebol uma arte, tem de ter alegria, ginga. Um belo drible tem de ter qualquer coisa de capoeiragem, tem de ser inesperado, de forma que o marcador fique estatelado no chão. Um craque tem de ter domínio do espetáculo e arrancar risos da torcida lá no poleiro como se estivesse num circo. E uma boa partida de futebol tem de ser algo entre o cômico e o trágico e ao final de cada peleja que caiam lágrimas dos vencidos e levantem as gargalhadas sonoras e muitos abraços entre os vitoriosos.
A lida aqui nunca foi mole pra sêo ninguém. O sujeito pirrototinho até pode vez ou outra pintar o simão de carapuça, sendo agraciado com umas chinelas da mãe, ou umas chulipas do pai, mas logo que passa a mijar espumando, a vida já lhe chama pra grandes responsabilidades. Não pode virar um cebede , um come bebe e dorme, vai ter de suar a camisa, se tornar o cumieeira-da-casa, correr o trecho atrás do arrelique, não vai ficar pedindo pelanca a gato, trata de ir fazendo uns bicos, pois no jogo da vida aprende que se vacilar, pobre só come frango quando joga de goleiro. Alguns de nós até que conseguiram alisar os bancos das ciências, tiraram o pé da lama e se aprumaram, mas a maioria só estudou um taquinho e cada qual se vira como pode. Outros de nós se perderam por alguns motivos e desandaram pelo mundo das sombras, e esticaram os cambitos cedo, vítimas de caroço-de-chumbo, às vezes por motivos banais, ou porque se tornaram malandros demais. Esta é uma das razões que antes de iniciar o tradicional, preto versus branco, formamos um grande círculo no centro do campo, todos de mãos dadas, incluindo o juiz, os bandeiras e os gandulas; oramos para aqueles que subiram antes, e ao término do Pai Nosso de Cada Dia, alguém sempre grita: - Axé! Viva o nego Camaleão! Mas ao mesmo tempo em que alguém faz esta louvação, outros maldizem o dito cujo entre os dentes: - Axé coisa nenhuma, aquilo tinha pauta com o capiroto!. Diante de sentimentos tão opostos, leitor, vou clarear os fatos, quero dizer, vou tentar, uma vez que o Camaleão já bateu a caçoleta e não está entre nós para se defender e contar sua versão sobre os fatos. Acontece que o dito Camaleão, bem lhe cabia este apelido, era um sujeito capaz de se adaptar a qualquer ambiente ou situação, maleável, mas também seco-na-paçoca, flexível, porém um cavalo batizado em certos pontos de vista, era mais liso que muçum ensaboado, sabia sair dos enrasques que ele mesmo armava, e tinha na sua natureza o dom da divisão. Sim, era capaz de unir todo mundo somente pra depois desunir. Vivíamos por algum tempo em harmonia e em paz, para depois entrarmos em grandes discórdias e desavenças.
Por exemplo, aqui onde era a lagoa seca, vivíamos todos juntos e misturados e a infância do bairro inteiro se divertia muito, nadávamos e jogávamos nossas peladas, até quando o Camaleão que sempre foi mandioca que jegue não rói, ficou encasquetado e determinou que a turma da rua de cima fosse pra outra freguesia, isto mesmo, que debandassem todos, pois aquele era o nosso espaço. Assim nos unimos para muita chapuletada e lapada e sabugada, várias lesões pra espantar aqueles que antes eram nossos camaradas e se tornaram assim do dia para a noite nossos inimigos imortais, visto que na visão do babaquara Camaleão aquilo era para o nosso único usufruto: Aquele espaço do céu onde soltávamos as nossas pipas. A lagoa seca. O encharcado campinho de futebol. As pedras que serviam de balizas. Tudo inclusive os cururus com suas verrugas e as pererecas com seus saltos. Tudo era nosso patrimônio.
Pois bem, aquela desunião entre nós, aquela esbodegada na turma da rua de cima, de início foi muito comemorada, mas logo percebemos o prejuízo, e o magote de problemas que aquele filho duma ronca fuça do Camaleão nos metera. Como praticar agora o futebol se a única bola era deles? Ou mesmo que os nossos possíveis adversários trouxessem a bola, como formar um time se agora não passávamos de meia dúzia de gatos pingados? E pior ainda, os nossos craques, o Zitinho, o Menega e o Piola, moravam lá na parte alta!
Tempos difíceis aqueles, amargamos muitas derrotas, timinho de arranca-toco, diziam. Foi preciso muita viração pra comprarmos uma pelota, mesmo assim de segunda mão e com uns gomos esfacelados. Todo jogo levávamos de buchada. O nosso futebol pichilinga virou gozação na região. Levou tempo pra gente se recompor. Sorte nossa (ou azar) a rua era repleta de cortiços, e assim a cada caminhão que chegava com aqueles roçarinos bóias-frias, capiaus fugidos das roças carregando suas tralhas, de imediato íamos conferir quantos moleques tínhamos na boleia, e assim com muito custo e aos poucos formamos os dois quadros. E assim o tempo foi passando pelas asas do vento, e com ele surgiram grandes transformações. O bairro foi crescendo, mais vielas e becos, mais casas de alvenarias e barracos; nos cortiços, a cada quarto, oito a dez criaturas vivendo na mais vil penúria, gentes vindas de todas as partes desta terra brasilis, do norte e nordeste veio um porrilhão deles, alguns com traços indígenas e todos eram chamados de baianos, inclusive este narrador que vos fala mesmo tendo nascido na gloriosa cidade de Imperatriz lá no Maranhão. Vieram descendentes de europeus, japoneses e árabes estes tomaram conta do nosso comércio. E aqui sempre tivemos muitos negros e mulatos, como se naquele tempo em que candeeiro dava choque, algum navio negreiro tivesse despachado todos eles aqui. Depois, muito mais tarde vieram os bolivianos, paraguaios, angolanos e nigerianos, sem quaisquer aperreios das partes, cada qual no seu espaço. Embora levando a vida na peinha, sem recursos, alguns com o amarelo-empobado nas faces, bexiguentos, perebentos e raquíticos e passando o que o diabo enjeitou sobrevivemos. Sim, como um estupendo milagre da natureza, pelos poderes divinos, levando tombos daqui e dali, estamos aqui unidos e vivos. Hoje é dia de festa no nosso campo de futebol que agora tem alambrados, vestuários, galpão para churrascos, biroscas pra gente tomar as brejas até o gorgomilo e nego sair daqui queimando os dois cilindros, chambregado até a extensão dos pensamentos. O nosso campo de várzea sobreviveu. Dizem que graças ao finado Camaleão. Topetudo, sem nunca fugir de qualquer panavueiro, ele foi tomando conta do pedaço. Foi quem fez o abaixo-assinado para o aterro da lagoa seca e transformar isto aqui num campo de futebol, mas não temos poleiro, e a língua do povo não tem pregas. Afirmam que o Camaleão era um bajulador do candidato a vereador Tonico Pires, andavam espalhando tapinhas nas costas e abraços pra todo mundo na época de eleição. Viviam enganchados, bebé com tomé, sabe se lá tramando tantas e quantas maracutaias e depois na vereança ambos deram chá de sumiço, esquecendo-se das promessas, largando nós com nossos habituais problemas de sanidade e vítimas das mazelas do poder público. Declaram que o tal candidato em troca de votos prometeu cargos e outros benefícios pra uns ingênuos, mas favoreceu apenas os parentes do Camaleão. Insinuam que a verba conseguida para a transformação daquela lagoa seca em nosso campo de futebol sumiu ralo abaixo, que ambos ficaram montados na onça, e o patrimônio de ambos teve um aumento significativo. Relutam em dizer que aqueles barracos que estão agora em torno do campo, foram feitos com o madeiramento que seria para a nossa arquibancada, tornando a rafaméia miserável em mais um curral eleitoral do quincas vereador. Por outro lado, há quem defenda o Camaleão, que o dito cujo sempre foi um cabra empreendedor, que sendo ele filho de mulher-dama que vivia na quengagem e pariu seis filhos de diferentes homens, e apesar de toda miséria, a desinfeliz sempre arranjava algo para pôr na boca dos pirrototinhos, e sendo o retrocitado filho mais velho, virou cumieira da casa, sofreu mais do que pé de cego, mais que sovaco de aleijado, tendo comido muito toicinho com mais cabelo, tomando osso da boca de cachorro, e nunca se entregou pra manimolência e sempre respeitou a quenga, e abraçou com ela a causa de criar os manos e nunca mentiu fogo. Ao bem da verdade que se diga, nascido com aquele espírito de general, de bispo, de líder sindical, gostava mesmo era de mandar, mas pegar no batente mesmo, nadica de nada. Considerava-se um homem de ideias empreendedoras. Ainda pirroto, ensinou os manos a caçar rãs nas lagoas que tínhamos na região e vendê-las vivas nos restaurantes chiques lá na região central de Sampa. Vivendo na penúria, sorrateiramente, invadiam os cemitérios e furtavam os vasos, as placas e os bustos de bronze e negociavam no ferro velho levantando algum larjã. Foi ideia dele, pegar aquelas caixas na feira, montar as caixas de engraxates, comprar as latas de tintas e as flanelas e pôr os cinco manos em pontos estratégicos do comércio para trabalhar pra ele. Deu o devido treinamento para os guris, pois estes deviam sempre sorrir com a chegada de um cliente, nunca, jamais, sujar as meias; ensinou também como fazer o batuque na hora de dar o lustre, pedir sempre uma gorjeta, e sempre dizer “volte sempre”. Assim, de hora em hora ele vinha recolher a grana, pois dizia que o boi engorda de acordo com o olho do dono. Ainda não satisfeito, montou aquela frota de carrinhos de feira para fretes, estimulou a competição entre os garotos da vila, quem realizasse o maior número de viagens, sem danificar os veículos e recolhesse mais grana tinha direito a uma gratificação. E assim, indo e vindo de empreendimento em empreendimento, foi ajuntando a rezina e montou um quiosque na beira do campo. Entupiu as prateleiras com a azuladinha borbulhante, filha-de-senhor-de-engenho, dengosa, manjopina, mata-bicho, quebra-goela, pernambucana, suor-de-alambique, tira-teimas, mandureba, amansa corno, cariri. Tratou também de pôr ali os petiscos, carne-de-sol, galinha de cabidela, manjubas, mocotó, vatapá, xixim de galinha, peixe muquiado, dobradinha de feijão branco, e outros engasga gato. De tal maneira que o quiosque vivia entupido de cu-de-cana, papudinhos de toda monta, que saiam dali queimando os dois cilindros. É logico que colocou os manos pra jambrar, e como era de seu hábito, passava ali vez outra pra recolher o arrelique, tinha outros afazeres importantes, não ia ficar moscando no balcão ouvindo lorotas daqueles que já estavam lavados nas águas que passarinho não bebe, tinha que, por exemplo, organizar os campeonatos de dominó, de bilhar, de cana-de-braço, os festivais de futebol com os times de toda a região, fazer as devidas inscrições, recolher a grana, estruturar as chaves dos jogos, comprar as medalhas e os troféus, providenciar os patrocinadores dos eventos, tudo isto demandava tempo e inteligência. Não demorou muito, o dito cujo estava envolvido com um porrilhão de bichos: avestruz, águia, burro, borboleta, cachorro, carneiro, camelo, cobra, coelho, cavalo, elefante. Pois, o leitor deve estar pensando que o Camaleão estava trabalhando em algum um zoo, ledo engano, de portinha em portinha, aqui e acolá, o matreiro virou bicheiro na região. Empregou muita gente nesta empreitada, um magote de aposentados, ex-detentos, desempregados, pitombas, e por aí a fora. Foi daí que começou a se meter na política e a desfilar na região com o quincas Tonico Piva, hoje deputado federal.
Hoje em dia tudo está diferente. De certa forma, podemos dizer que vivemos em céu de brigadeiro. Isto aqui antes era um panavueiro. De caju em caju surgia alguém querendo ser o grandola do pedaço, a barra era pesada, reinava a lei do cão. E como se diz: quando o capiroto não vem, manda o secretário. Os cabruncos brotavam do nada e montavam as quatropilhas. Não faltavam aqui acabador de feira, acaba-novenas, cabra-de-peia, desmancha-samba, fecha-bodegas, jagunço, metido a gás-com-agua, oficial-de-defunto, seco-na-paçoca, xamboqueiro, valentões de todas as estirpes, disputavam o território numa luta ferocíssima e o sujeito honesto e trabalhador vivia no meio daquele esperretetê sem condições de cair fora e ganhar a lapa do mundo fugindo dos marginália. Vivíamos oprimidos. De um lado, nomes como: Boca-de-traíra, Xeleleu, Valete, Nego Dio, Acabrunha, Sete-Copas, Limoeiro, e tantos outros cabruncos marginais que viviam na delinquência. Do outro lado, os galos topetudos, os milicos que não faziam muita distinção entre quem era marginal e quem era trabalhador, o burburinho pegava fogo, e muitos inocentes desembarcaram precoces pro outro lado do mundo, e pela vida azarosa muitas lágrimas rolaram nas faces das pobres mainhas pobres. E assim, no meio do mundo das sombras, sem saber a qual momento um de nós ia beijar a sola do sapato, desprotegidos daquele porrilhão de malvadezas, considerados uns jumentos sem mãe perante as autoridades públicas, naquele cinzento cotidiano cruento, que foi instituída aqui a taxa de segurança. Uma lista correu solta de mão em mão recolhendo as assinaturas, no cabeçalho da folha a seguinte frase: “Precisamos de Paz! Pensem no futuro dos seus filhos! Contribua antes que seja tarde de mais.”. Alguns de nós até protestaram, aja taxas pra pagar, tantas e não temos saneamento nenhum, falta água, luz, esgotos, escolas, hospitais, não temos piçiroca nenhuma, vale- me Deus! Mas os ânimos se acalmaram, pois a paz era o que mais desejavam nossos corações em pânicos. Nenhum de nós queria cair no meio do mundo e largar ali tudo que construiu com muito brio nas mãos dos samangos. Conta-se a boca pequena que esta tal de taxa foi ideia da cabeça do Camaleão, usada pra dividir entre os milicos e os marginais, para sossegar um taquinho o pedaço, mas como o supracitado bateu a caçoleta e não está aqui pra de se defender e a rafaméia fala demais, fica o dito pelo não dito que boca fechada não entra mosquito e não me chamo Benedito. De fato, tivemos durante certo tempo, momentos de calmaria, com muita gente esquecendo-se de pegar a reta do mundo e cair fora daqui, esquecendo que passou o que o diabo enjeitou. Daí que os pais soltaram os pirrototinhos que invadiram as ruas numa alegria sem fim, soltando suas arraias, jogando peão, bola de gude, taco, esconde-esconde, passa anel e amarelinha. As cadeiras nas calçadas retomaram os seus lugares, os velhos conversavam em versos e prosas suas peripécias pela vida, retomamos nossas festas juninas, os jovens nos namorisqueiros ao ar livre, os cavaquinhos e violões e pandeiros empoeirados ganharam o brilho das serenatas, enfeitamos as árvores das ruas, pintamos as calçadas e os muros, andávamos de bicicletas sem medo de bala perdida, enfim, tudo foi tampa de crush enquanto durou e a prosopopeia teve o seu fim, tudo por conta que os marambados entraram em conflito com os milicos, com cada qual se julgando lesado na partilha da tal taxa de segurança. Azeitados, trocaram muitos caroços-de-chumbo, e a nossa felicidade pichilinga foi-se embora, recolhemos nossas crianças das ruas e as prostramos diante das tevês; os velhos esqueceram-se de suas prosas e aventuras e voltaram ao mundo senil; as fogueiras juninas viraram cinzas, os instrumentos musicais ficaram mudos, as pinturas nas calçadas e nos muros se apagaram, guardamos as bicicletas nos porões, nem pensar em namoricos ao ar livre, teve fim a nossa trêfega alegria. O turundundum voltou a zoar entre nossas cabeças. Isto durou por quase duas décadas. A anomia tomou conta do pedaço. Muitos jovens entregues ao vício e à delinquência bateram a biela. A coisa toda só foi melhorando quando chegou aqui algum progresso, umas escolas, um posto de saúde, melhorias no saneamento básico, extensão da rede elétrica, piche nas ruas enlameadas. Pra estudar a molecoreba não precisava ter de ir lá pra baixa da égua depois da ferrovia e atravessar aquele porrilhão de capoeiras brejadas, razão pela quais muitos não alisaram os bancos da ciência. Com todas as vias entupidas com gente até o gorgomilo, as autoridades de olho nos votos, nos deram uma pichilinga de atenção. E o Camaleão, pergunta-me o leitor. Respondo, foi se enveredando pelos caminhos mais diversos. A cada dia mais grandola, sempre atrás do seixo, inaugurou um salão de forrobodó, o rala-bucho tinha o som da zabumba nas alturas, tendo gente que só farinha, quase todo fim de semana o couro comia no centro, os seguranças da casa baixavam a ripa na fuleiragem, muita treta, cada sururu de dar gosto ao cão, aquilo incomodava muitos, e os poucos que fizeram suas reclamações, tiveram como resposta do Camaleão o seco argumento: “Os incomodados que se mudem!” Comentavam que no puxadinho anexo ao salão funcionava um beréu de mulher-dama, de ponta de rua e peniqueiras ainda adolescentes sujeitas a viver na quengagem por conta que foram expulsas de suas casas por um motivo ou outro. Por conta das propinas dadas às autoridades policiais, o salão funcionou por um magote de anos, o seu fechamento somente ocorreu quando foi decretada a lei do silêncio nas áreas residenciais. Daí que o Camelão já tava montado na onça. E estes tubareus montou uma empresa de caça-níqueis. Mas, porém, todavia e, entretanto, o tempo foi passando torcida brasileira, e viver não é pra qualquer prego!
O sujeito tem que ter tutano, levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, como diz o poeta de Sampa. A roda da vida foi girando e indo, e voltando e vindo, e hoje tem espetáculo de bola neste terreno que um dia foi a lagoa seca. O futebol de preto e branco. O dia amanheceu um pouco carrancudo com o sol não querendo sair entre as nuvens. O Friaça que é faz-tudo aqui, mais os meninos, já estão caiando de branco o campo, já traçaram as quatro linhas, os arcos de cantos, a pequena e a grande dos dois lados e a marca de pênalti e meia-lua, faltando a linha do meio e o grande círculo, as redes já estão colocadas nas devidas balizas. Friaça é um sujeito ciente de suas responsabilidades, sabe que as linhas tem que ser bem traçadas, as redes ausentes de furos, pois a qualquer vacilo podem provocar um lance duvidoso, e como não temos recursos de vídeos a mandiola vai sobrar pra ele. Conta-se que o Friaça foi um craque antigamente, chegando a jogar nos times da primeira divisão ganhando uma boa bufunfa, mas que perdeu tudo na jogatina e gastando os tubos com mulher-dama. Lá nos vestuários, os uniformes já estão devidamente preparados no aguardo dos boleiros. A pouca grama que existe foi devidamente aparada, e o passaredo mata a fome com o magote de minhocas, e um gavião pousa lá em cima da baliza de olho no passaredo escolhendo sua presa. O céu, aos poucos, vai se desnuviando; os raios de sol reluzem nos orvalhos e as andorinhas passeiam em bandos no céu onde antes imperavam as nossas pipas.
Futebol de preto e branco? O leitor deve estar se perguntando, afinal do que se trata? Calma, vou detalhar os fatos, pois não sou de ficar contando prosa para criança dormir sem ceia. O lance todo foi este que se segue. A molecoreba foi crescendo, cada qual cuidando da sua venta, cada qual na sua lida, mas a nossa peladinha do fim de semana nunca foi esquecida. Ah, isto não. Sempre nos reunimos para o desporto de onze contra onze. Nosso lazer maior e no final de cada ano, antecedendo o natal se realizava o tradicional Solteiro versus Casado, o maior evento nosso, onde o dito cujo Camarão faturava um porrilhão. Acontece que a rapaziada foi se ajeitando com seus pares, encontrando a metade da laranja, a alma gêmea, muitos foram se casando, e faltaram solteiros para aquela competição. Isto deixou o Camaleão ensimesmado, descachimbado, caçando ideias de como resolver aquela problemática, doía-lhe no coração ver destemperar as vendas lá no quiosque, pois já havia abarrotado as prateleiras com as manjopinas, estocado muitas brejas nos frios, encomendado muito engasga-gato, eita peitica da velha chica! O que fazer? Durante uma semana andou a caldo de pinto, de venta inchada, azeitado, rosnento, virado no molhe de coentro, até que lhe veio a solucionática, homem de ideias, fico orgulhoso, e confabulou consigo, vai ser bom assim na lá na casa do carai! O jogo do ano vai ser Branco versus Negro! Tratou de reunir o pessoal no domingo pra comunicar o fato.
Pois bem. Começou a reunião numa babação sem fim, agradecendo a todos pela presença, dizendo que todo mundo ali era massa real. E que estava admirado, pois sendo já nove horas da manhã, todos estavam sóbrios, ninguém estava queimando os dois cilindros ainda. Agradeceu pela conduta de todos, aquele fora um ano de paz, sem sururu, sem panavueiro, sem turundundum, e que sem querer arrotar farofa, tinha orgulho de todos nós. Todos estavam em dia com as taxas de manutenção do campo e com as lavagens dos fardamentos. E ficou assim uma meia hora naquele bolodório fazendo o balanço anual, com nego já ficando impaciente e resmungando que o Camaleão quando abria a carretilha falava mais que Fidel Castro, vale-me Deus! Pois bem. Depois destas considerações iniciais, tratou de ir ao assunto em pauta. O jogo Brancos versus Negros. A ideia não foi bem aceita por alguns, enquanto outros se agradaram da sugestão, isto provocou um burburinho, mas o que era aquilo agora, a apartheid, lá vinha o Camaleão de novo com aquelas ideias de divisão entre os manos, não faltou quem não se recordasse daquela história de turma da rua de cima e de baixo. Daí que o nosso craque Zitinho, um mulato, disse que não era branco, mas também não era negro, ia jogar em qual time então? O Japanildo arregalou os olhos e disse:
- E eu que sou amarelo vou ficar de fora?! O Piola branco, mas filho de uma negra com um galego , disse indignado: - Porra, eu sei que sou brancoide, mas me considero negro!. O leitor já percebeu a polêmica da chola que virou aquela reunião, os ânimos se exaltaram. O nego Ferreira ficou entusiasmado e disse: - Tá na hora mesmo da gente mostrar pra estes brancos quem é melhor de bola, vamos dar de chocolate! Aí, na moral, sem prezepada, dez a zero já no primeiro tempo pra negrada! E apontando pra veias dos braços, disse, sangue bom mano, sangue bom! . O Zitinho pediu a palavra, palavra dada, disse: - Sei não, Camaleão, mas tou achando que aqui no bairro tem muita gente racista, e quando torcedor começar a gritar lá no alambrado “Vai criolo burro! Solta a bola macaco!”, isto vai terminar em chapuletada, vai ter confusão! A maioria concordou; ser chamado de macaco era um insulto cruel, de deixar qualquer nego espumando de ódio. Daí lembraram-se do caso do jogador Grafite que levou o jogador argentino racista em cana. O Kunta, negro retinto, zagueiro de estilo refinado, disse: - Eu sou negão e pronto, não vou agora vira-casaca e falar que sou moreno, por isto tou sem registro na carteira há mais de dois anos, agora lá nas agências, eles pedem a foto, nem adianta pôr na ficha, cor de jambo, eles vão me eliminar antes da entrevista; aliás, tem algum empresário aqui pra dar emprego para este cabelo de cupim?. O kunta arrancou gargalhadas de alguns e outros ficaram sérios, pois sentiam na pele o drama. O Camaleão pediu a palavra, palavra dada, disse: - Pessoal, eu estou propondo apenas uma partida de futebol entre negros e brancos, uma forma da gente se confraternizar entre nós. Sou negro e sei como é tudo isto, já sofri muito preconceito, estamos neste pedaço há mais de trinta anos, vai ser um jogo de solidariedade entre nós, quem se considerar negro que jogue no time dos negros; quem se julgar branco, que jogue no time dos brancos e pronto! Aliás, vou mudar o nome do evento, vai se chamar Preto e Branco. Os negros vão jogar com o fardamento branco, e os brancos vão jogar com o preto. Convidem todos os amigos e familiares, vamos fazer uma grande festa.
Desta maneira, concordamos todos. E assim que se deu a primeira partida, entre negros e brancos.
A PRIMEIRA PARTIDA: BRANCOS X NEGROS.
Não faltou gozação e muito sarro no ambiente, no quadro negro escreveram a escalação dos dois times:
NEGROS: Cabelo de Cupim, Maria Nagô, Tambor de Criola, Muçum, Tição Apagado, Pai-João, Do Caralho Preto, Nego-Bom, Prego, Afoxé e Arigofe. BRANCOS: Sueco, Lambisgoia, Branca-de-Neve, Alvinho, Alemão, Vandoca, Russo, Galego, Mal Caiado, Brancoide e Coxa branca.
Tudo começou com muita queima de fogos acordando as galinhas. O campo devidamente enfeitado com bandeiras pretas e brancas. O Camaleão arrumou muitos patrocinadores, um porrilhão de placas e faixas, e uma delas se destacando escrita em letras garrafais: NÓS SOMOS CONTRA O RACISMO E O PRECONCEITO! NEGROS E BRANCOS UNIDOS JAMAIS SERÃO VENCIDOS. Tudo aparentemente estava quase na perfeita harmonia, mas o Camaleão estava fulo, muito contrariado, azeitado com dois desfalques importantes no time dos negros. Uma falta até que se justificava, o Lilica sairá logo cedo aperreado atrás de uma maternidade com a mulher com dores de parto, daí, então, por sorte, pela força do Pai Celestial encontrou uma vaga nas Clinicas, mas tava aguardando ainda aparecer um xerecologista. O Lilica era o melhor zagueiro de toda a região. A outra baixa deixou o Camaleão com a venta inchada, reclamando mais que bode emborcado, dizendo que tinha pisado em rastro de corno. E não é que o Menega ponta-esquerda liso que só quiabo se esquecera do compromisso e passou à noite num pagode; presepeiro, chegou ali xambregado, botando os bofes pra fora, fedendo na pindaíba, de nada adiantou dar um banho no bico-doce, ficou ali enquizilando todo mundo e por um culhonésimo ainda não saiu no braço com o Kunta! O Camaleão a pulso e a canelão despachou o mucufa pra casa. Que falta de responsabilidade. Por causa daquela infração o Menega foi suspenso por dez jogos. O time dos brancos também estava com seus problemas. Além de algumas contusões, o goleiro Manduca recebera uma ordem de despejo, tava lá com o caminhão da prefeitura na sua porta e confabulando com o oficial de justiça sem saber em qual muquifo ia mandar as suas tralhas e encostar-se a qual parente provisoriamente com a família.
O Camaleão tratou logo de encerrar aquele aquecimento que alguns estavam fazendo lá no quiosque mandando goela abaixo o suor de alambique, mandou todo mundo pros vestuários, exigia concentração total. Para o jogo, vieram juízes e bandeirinhas da confederação, tudo como se fosse final do brasileirão. O Camaleão é pedra de responsa, diziam alguns torcedores lá no alambrado. Quando os times entraram em campo, uma saraiva de rojões explodiu no espaço, coisa de tremer o chão do campo da várzea, mas emoção mesmo veio quando tocaram o hino nacional e vê-los ali enfileiradinhos no centro do campo naquela mímica labial como se conhecessem a letra.
O jogo começou muito tenso, com a poeira subindo na altura da lua, um tropel doido como se tivessem soltado ali um magote de bois ensandecidos, derrepentemente todos ficaram variados do juízo, a bola era profundamente maltratada, chutões na altura da lua; até o Zitinho, craque renomado, tropeçou na pelota levando um tombo medonho e foi agraciado com muitas vaias. A galera grudada no alambrado começou a reclamar. Mas que futebol cabelo de sapo era aquele, bicuda pra lá bicuda pra cá, danou-se, de onde já se viu tanta pompa pra tão pouco futebol! Cada técnico gritava feito arara chumbada com seus manos, pediam calmas, põe a bola no chão oh meu, aí goleiro solta a bola sem se afobar, aí lateral se você ficar entrando pra quebrar o ponta deste jeito vai ser expulso e o jogo nem começou, pega leve mano. Demoraram uns quinze minutos pra tudo voltar à calmaria pra se começar a jogar um futebol decente, com troca de bola, passes elegantes, a coisa toda foi se acalmando e o futebol arte dando suas caras. O ponta direita dos brancos, o tal de Neblina tava com a macaca, aprontando misérias em cima do lateral Ferreira que suava muito pra marca-lo, levando muitos dribles, e não deu outra, Neblina centrou de bico uma bola lá no meio da área, o avante Alves meteu a cara na bola e pôs no ângulo. Gol! Uma explosão de alegria nos alambrados, a torcida dos brancos soltando um porrilhão de fogos. Aconteceu que o Alves continuou estatelado lá na área, e não é que aquela bolada na cara tinha lhe espatifado a pereca de cima, com dentes voando pra tudo o que foi canto! Socorrido e levado para fora do gramado, o Alves que já era fraquinho de feição agora lamentava a pichilinga de dentes que lhe restara na boca. O jogo voltou a esquentar, com todo mundo baixando a ripa, toco e tostão, lá e cá vários lances perigosos, até que surgiu um lance de falta na meia-lua pro Rildo chutar, o nego pegou a pelota ajeitou, parecia que estava dando algum recado na orelha da criança, deu certa distância e chutou, a bola subiu tal qual um torpedo, fez uma curva no ar caindo lá no canto onde a coruja faz ninho, golaço. Taí, que certas coisas, a ciência não consegue desvendar, como um sujeito magro feito grilo, com os cambitos de cangalhas, podia dar um petardo como aquele e ainda furar a rede era um mistério para nós. 1 X 1. A torcida dos negros embalou um batuque solto, fez uma festa pai-d ’égua, mas nem deu tempo pra muita maré cheia. O Neblina que tava passeando mais que pitomba na boca de velho em cima do lateral Ferreira, aplico-lhe uma carretilha e emendou um tiraço pro gol, o goleiro que substituiu o Manduca saiu batendo roupa, a bola fez chuá nas redes. 2 X 1 pros brancos. O Ferreira que já tava sendo humilhado de levar tantos dribles depois daquele lance, simulou que estava com câimbras, e pediu pra sair, no que foi prontamente atendido, saiu pro chuveiro debaixo de vaias. O Camaleão ficou esbravejando, virado no molhe de coentro, xingando todo mundo, donde já se viu tomar um gol daquele, time de maricólias da porra.
O jogo esquentou os brancos só no ataque, a negrada no ferrolho, com dez embaixo dos quatro paus, somente o Rildo lá frente, solitário, samango sem poder fazer nada. E de nada adiantou aquela tática de jogar só na defesa, os brancos foram descobrindo brechas, abrindo espaços, outra falta perto da área, o Cupuaçu descendente dos índios guaranis, lá da aldeia do Jaraguá, que estava jogando pros brancos e que tinha fama de ser catimbozeiro, pediu pra chutar e não deu outra, meteu uma bola de trivela que a danada tomou um efeito inesperado, subiu e desceu, uma folha seca de fazer inveja ao saudoso Didi. 3 a 1 pros brancos. Fim do primeiro tempo, a negrada saiu cabisbaixa e os brancos metidos a gás-com-água.
O INTERVALO
Não preciso nem contar quantos impropérios o Camaleão soltou lá no vestuário, tava transtornado, muito contrariado, rosnento, virado no saco de pentelhos, o xingamento dava pra ouvir pra lá da ferrovia, sobrou pra todo mundo, gritava suando aos pingos que rebanho de cabras frouxos era aquele, donde já se viu perder daquele jeito, time sem brios, bando de fuleiras, lamentava que ali tivesse jogador que não servia nem pra chutar penico no escuro, nunca pensou na vida passar por tamanha humilhação, que quem não quisesse jogar, suar a camisa, dar o sangue, fosse pra baixa da égua. Todos ouviam em silêncio. Uma boa notícia, o Lilica chegou ali esbaforido, voltara das Clinicas, alarme falso, ainda não era a hora de o rebento rebentar, mas tava muito feliz porque o xerocolista tirou uma chapa e revelou que era um menino. O kunta respirou aliviado, sozinho na defesa tava difícil pra salvar o time daqueles seguidos chuveirinhos. O Camaleão animou-se tratou então de levantar a moral do time. 3 a 1 era uma diferença pichilinga, ele tinha certeza que os negros iam virar o jogo, a negritude não ia sair dali humilhada, tava na hora da raça mostrar o seu valor, tinha um time valente e soltou a maitaca fazendo um elogio para cada jogador e aqueceu os brios de todos.
O segundo tempo...
O jogo começou nervoso, dava pra notar que o time dos brancos tava jogando só na retranca querendo garantir o resultado, muita firula e um tal de cai cai, e o juiz com aquele jeito de meio rádio-meio televisão, deixando a galera lá no alambrado na dúvida se o homem do pito era ou não era baitola, apitava falta toda hora pros brancos. Isto tava irritando todo mundo. Daí esqueceram-se do Rildo, mas o Rildo não se esqueceu de que tinha uma patada atômica, pegou a bola na meia lua e soltou um bombaço a pelota bateu na baliza de cima e entrou um golaço. 3 a 2. O Camaleão vibrou muito, gritava feito arara chumbada, nós vamos virar este jogo. Muita festa, explosões de fogos.
Foi daí que no meio desta comemoração que aconteceu um fato lamentável, leitor. Alguém, algum fofo do juízo atirou um pacote lá na área de defesa da negritude, atirou e caiu na lapa do mundo, o mucufa não esperou pra ver o resultado, covardemente pegou a reta pelos labirintos das vielas e desapareceu. O Kunta curioso abriu o pacote, lá havia algumas bananas e o folheto discriminatório fazia alusões aos negros, nordestinos e homossexuais . O kunta retou-se, ficou nos azeites, saltou o alambrado, saiu caçando o remetente do pacote que naquela altura do campeonato já estava pra lá do cafundó do giricó. E então? Danou-se, uma revolta geral, com muito nego prometendo enfiar aquelas bananas no ás de copas do engraçadinho. O Camaleão ainda sacou do ximitão e falou: - Ah, se eu pego este corno, ele ia conhecer a lei do cão. A partida ficou paralisada por uns vinte minutos, todo mundo nos quasquasquas que aquilo era coisa dos tais skinheads que andavam matando os pitombas, lá no centro de Sampa, bando de covardes. O homem do pito incorporou sua alma feminina, ficou nos melindres, muito nervoso com aquilo tudo e foi as lagrimas ameaçando deixar o campo e abandonar tudo, o Camaleão pôs a ordem na casa, ainda com o parabelo na mão deu três tiros pro ar e disse não senhor, vai apitar até o final esta choça, tá pensando o quê, aqui não é casa de maria joana não, e não é qualquer um que vai dar fim na nossa festa! Nem uisquerrede, nem tão pouco juiz fiofozeiro!
A partida foi retomada, mas os ânimos continuavam exaltados, aquele lance da banana mexeu com os brios da negritude. O Zitinho craque renomado que depois daquele tropeço na bola andava amuado, resolveu mostrar pra que veio, metendo logo duas pelotadas na trave. O Piola, outro craque que até então estava hibernando caiu pra ponta esquerda e tava humilhando o lateral Bacuri com seus dribles. E não deu outra o Bacuri esbrabejado fez uma falta violenta e foi expulso. Os brancos com um homem a menos ficaram batendo cabeça em campo, mais perdidos que cego em tiroteio.
Foi o lance mais lindo da partida, a dupla resolveu tabelar lá do meio campo até área, lembrando Pelé e Coutinho. Foram deixando os zagueiros estatelados no chão e pra finalizar o Piola bateu por cobertura, a bola entrou lenta dentro do gol. O goleiro sequer se mexeu. Um gol de ficar nas páginas amarelas da nossa memória várzeana. 3 a 3. A galera do alambrado foi à loucura, mas estranhamente o Camaleão ficou sentadinho sem se manifestar, passando a mão na cabeça. Estava agoniado, sentindo uma gastura. Mas na euforia ninguém notou.
O jogo tava chegando ao fim, quarenta e quatro do segundo tempo. Foi quando o Kunta pegou uma bola que veio pipocando e lascou um chutão daqueles de beque de usina, a bola subiu e subiu foi pingar lá na pequena área e encobriu o goleiro. Gol! 4 a 3. Vale-me Deus, aquilo fez a terra tremer, a torcida da negritude invadiu o campo e o juiz apitou o final. E quis o destino que fosse o fim do Camaleão entre nós, o babaquara bateu a caçoleta ali mesmo, vitimado por um infarto fulminante, assentou o cabelo de tamanha emoção.
O FUNERAL DO FAMANAZ

Arre égua, cerimônia tal qual aquela nunca tínhamos visto, muito glamour para o finado, armaram uma tenda enorme lá no centro do campo de futebol onde ficou o caixão que alias era um verdadeiro luxo, todo dourado, ladeado por enormes castiçais de prata. O Tonico Piva organizou o velório, tudo de acordo com o gosto do seu cabo eleitoral que uma vez lhe confessara que depois de morto queria que a cerimonia de seu funeral fosse ali naquele pedaço de chão onde um dia fora a lagoa seca, ali onde fora um menino infante, ali onde recebera o apelido de Camaleão, pois ninguém lhe conhecia por José Amaro seu nome no cartório, ali onde começou a construir a sua vida mais os manos, queria que ali lhe fizessem as últimas homenagens.
Debaixo da tendona, rolava até um serviço de bufê, tudo servido com muito requinte, as copeiras distribuíam café, chá, sanduichinhos, agua, sucos, e até uísque por debaixo dos panos, mas aquela confraternização era privilegio somente de alguns parentes e amigos abastados e gentes do partido. Colocaram os cordões de isolamento para impedir a invasão de penetras naquela área reservada só pros bacanas e o pessoal aqui do pedaço somente podia passar por fora para dar uma olhadela, sem poder fazer quarto ao finado na área privativa. O finado, aliás, tava por de mais luxento, com um terno azul, trancelim grosso de prata no pescoço, bem maquiado, com um sorriso enigmático nos lábios, muito tranquilinho, aguardando a hora de ir para crematório! Serviço completo da funerária contratada. Lá no quiosque, os camaradas de infância daquele que bateu a biela, tomavam umas canjibrinas, e alguém comentou: - Olha como são as coisas, o Camaleão até depois de morto uniu e desuniu todo mundo, nós aqui como uns fuleiros mandando goela abaixo as canas e os bacanas lá se deliciando com old black dez anos.
Feitas todas as devidas homenagens, muitas rezas, muitos discursos, muito chororô, o benzimento do padre pra alma do dito cujo desatar das coisas terrenas e ir refrigerada para o além, mas ainda levamos um susto da breuba. E não é que um helicóptero passou ali sobrevoando baixo com a malandragem pensando que era os homens da polícia fazendo uma varredura na área, e nego que devia pra justiça já se mandando pelas vielas e labirintos, ganhando a lapa do mundo! Mas não eram os galos enfeitados não. O que se viu fazia parte dos serviços da funerária, a nave ficou ali paradinha feito um beija-flor soltando chuvas de pétalas de rosas no campo.
E por fim, o rabecão ligou as sirenes e um magote de carrões levaram o babaquara embora. E o Menega já chambregado lá no quiosque se benzeu e gritou: Já vai tarde quem ontem morreu antes ele do que eu!
E assim, manos periféricos, não é por morrer um caranguejo que o mangue vai viver no luto, nada disto. A pelota vai rolar novamente e já virou tradição todo fim de ano, a peleja entre negros e brancos, invenção do famanaz Camaleão que virou cinzas, cinzas que foram espalhadas pelo campo, aqui, onde um dia foi uma lagoa seca e coaxavam os sapos e as rãs.

Um comentário:

  1. UMA DELICIA DE LEITURA VC ME PROPORCIONOU, ESTE SEU CONTO SOBRE FUTEBOL, ANALISA COM MUITO HUMOR AS PERIPÉCIAS DO MUNDO PERÍFERICO E VERDADEIRO, PARABÉNS.
    ANTONIO PETRIN

    ResponderExcluir