domingo, 12 de janeiro de 2014

O sorriso da cachorra - últimos capítulos -

Olinda e Vila de Nazaré
Os dois resolveram passar o carnaval em Olinda. Quando chegaram, na quinta-feira, a cidade já estava em festa! Pessoas bonitas passavam com mochilas, sacos de dormir, e a alegria nos rostos era evidente. Eles ficaram em uma casa próxima aos “quatro cantos”, local tradicional de encontro dos blocos carnavalescos, numa rua situada no final de várias ladeiras, com vários pequenos botecos. Arrumaram as coisas e foram de imediato para a rua. Chegaram aos “quatro cantos” e, no balcão de um boteco, pediram duas cachaças. Patrícia gostava de tomar bem devagar, como se saboreasse um licor, em pequenos goles. Os dois vestiam fantasia de palhaço, bermuda verde com bolinhas brancas, com suspensório, tocas de palhaços carecas e os rostos pintados com batom vermelho e minâncura branca circundando a boca e as sobrancelhas. Caminharam pela cidade, ladeira da Ribeira, Igreja Sé, pátio da prefeitura, onde ficavam as emissoras de TV, transmitindo ao vivo.
Era impressionante a diversidade daquele carnaval. Era praticamente impossível encontrar duas fantasias iguais: palhaços, colombinas, pierrôs, Mateus e Catirina, índios, caboclinhos e nenhuma igual; enfermeiras, policiais e sem falar nas inventadas. Os bonecos gigantes de Olinda eram espetáculo à parte; enormes, com seus braços balançando de um lado para o outro, com orquestras acompanhando, e aquela multidão a cantar as belas canções de carnaval.
Guerreiros de lança caminhavam, aos pares ou sós, para o ponto de encontro dos maracatus de baque solto, que representavam com orgulho seus terreiros de candomblé, em desfiles pelas ladeiras de Olinda. O colorido de suas jubas, os chocalhos batendo, não havia uma só pessoa que não parasse para admirá-los. As casas que tinham som ligado nas portas desligavam em respeito à passagem dos maracatus e também dos blocos. A cada encontro de blocos, André e Patrícia mudavam e passavam a acompanhar o seguinte. André carregava um cantil com vodca e refrigerante de laranja. Quando acabava, voltavam a casa para reabastecer.
À noite, Patrícia tinha bebido um pouco mais e foi dormir. André ficou na porta da casa brincando e vendo as pessoas passarem. De repente uma “loura” pulou em seu pescoço e lhe beijou a boca, arrastando-o pelo braço para os “quatro cantos”. Foi quando ela então colocou a mão dele em seu sexo e tentou beijá-lo novamente. Ele não entendeu, mas recusou e voltou para casa, pensando por que fez aquilo, se ela era linda! Olhos azuis, pela branca, cabelos na altura dos ombros, cacheados, e vestia uma fantasia de diabinha. Quando André saiu, ela deu de ombros, virou o rostinho para o lado, sorriu e mandou um beijo para ele, sumindo em seguida pela ladeira. Chegou a casa e Patrícia estava dormindo. Deitou-se ao lado dela e a abraçou. Ela retribuiu e se beijaram, se cariciaram e inevitavelmente fizeram amor.
Quando o carnaval terminou, resolveram passar uns dias na casa de seu irmão, que agora morava na Vila de Nazaré, município do Cabo de Santo Agostinho, interior de Pernambuco. Ângelo morava em seu atelier, que era uma casa antiga com várias janelas de madeira. A fachada era amarela com detalhes em branco e as janelas azuis, em frente a casa havia uma mata. Embrenhando-se por ela, dava-se numa antiga casa de farinha, que tinha sido transformada em um restaurante.
Foto: Daniel Barros*
Quando chegaram, após arrumar as coisas, foram para a casa de farinha almoçar. Pediram peixe e, enquanto era preparado, bebiam cerveja, cachaça, e tomavam caldinho de feijão. O peixe estava muito saboroso. Seguiram então, após a casa de farinha, para outro lugar. Descendo havia uma trilha que dava no mar: era uma visão magnífica! A praia era formada por rochas e sobre elas as ruínas de um velho forte chamado pelos moradores da região de “Castelo do Mar”. Fora ali que o navegador Vicente Pinzón descobrira o Brasil em 1498, batizado por ele de Santa Maria de La Consolacion.
À noite, foram para a praia de Suape. Sentaram para beber, fumar charuto e conversar. Era lua nova e a noite estava ainda mais escura. O irmão de André e a esposa resolveram voltar mais cedo. André e Patrícia ficaram, queriam apreciar um pouco mais o local e fazer uma caminhada pela praia. Caminharam um pouco e sentaram na areia para ouvir o mar. Ela estava de minissaia e camiseta; ele só de bermuda. A praia estava deserta. Ao longe, apenas as luzes dos botecos rústicos de madeira. Deitaram para contemplar as estrelas, pois a escuridão as tornava mais radiantes. André abraçou Patrícia, acariciou seus seios e baixou sua calcinha. Ela estava excitada e seus corpos se entrelaçaram.
— Eu te amo! – disse André.
— Nunca vai me deixar? Promete que nunca vai me deixar.
— Prometo.
— Parece que meu corpo está em brasas.
— Adoro sua boca, seu beijo, seus lábios em minha boca.
— Que delícia sentir você dentro de mim, encher-me com seu gozo quente.
O suor escorria pelo corpo de André, passando para o de Patrícia. O calor de seus corpos parecia iluminar a noite, transformandos-os em um só. A terra parecia se mexer embaixo deles; as estrelas corriam no céu, como se todas caíssem na Terra, ao mesmo tempo. A noite calma, de repente se agita, e o vento, antes suave, agora soprava areia sobre seus corpos, como se quisesse apagar o incêndio que ali se iniciava.
— Você sentiu? – disse ela.
— O quê?
— A terra? Parece que estava se mexendo, como você fez isto?
— Não acredito que você também sentiu.
— Nunca tinha acontecido isto, desta forma, como se só existisse um corpo.
— Como se nós tivéssemos nos transformado em uma só pessoa.
— Foi o que senti também.
— A areia parece que nos envolveu num casulo.
— E agora nascemos um só, como se algo nos ligasse como gêmeos siameses.
— Vamos entrar no mar?
— Tenho medo.
— Estou com você, não tenha medo.
Bateram as roupas para tirar a areia e as colocaram sobre umas palhas de coqueiro e, nus, entraram no mar, que estava calmo e quente. A ventania já parara e aquela água quente estava muito boa. No horizonte distante, um navio navegava em direção ao porto, provavelmente um cargueiro vindo de bem longe. Seus tripulantes de terras longínquas nunca poderiam imaginar que ali o mundo havia tremido por causa do amor e que nunca mais seria o mesmo. Talvez algum marinheiro pudesse ter visto o fogo naquela praia, mas deveria ter pensado ser uma fogueira ou algo parecido.
André acordou cedo, seu irmão queria levá-los para conhecer alguns locais. Ele escolheu ir então a “casa do faroleiro”, que era a ruína de um antigo farol. Apenas as bases do farol existiam agora, a casa do faroleiro, com suas paredes grossas de tijolos batidos, ainda resistia totalmente abandonada pelas autoridades, num total descaso com a História. Eram enormes paredes, e muito altas, sem portas nem janelas; só os espaços vazios. A imaginação voava sobre quem, num tempo distante, viveu ali, como viveu e como amou? Era um casal feliz? Quanto sacrifício para proteger os que, naquele imenso Atlântico, navegavam bravamente.
Para chegar lá, passava-se pela igreja e pelas ruínas de um antigo mosteiro e também pelo novo farol de concreto pintado de branco. Ao lado, ficava uma casa também branca, onde sua moradora fez uma simples lanchonete. Depois, uma área descampada antecedia a pequena mata, onde alguns cães abandonados passaram a viver e se tornaram selvagens, mas que raramente eram vistos durante o dia. Era uma depressão. Ao descer, caminhava-se um pouco dentro dela e, após uma subida, chegava-se a “casa do faroleiro”. Do rochedo, podia-se admirar a vasta beleza do Atlântico, com seu lindo azul profundo. De lá, foram para o “suspiro da baleia”, onde o mar entrava por baixo das rochas. Quando suas ondas pressionavam as águas, estas subiam sob uma pressão incrível, esguichando por uma fenda o que imitava o “suspiro” de uma baleia.
Na volta, pararam para tomar suco de mangaba na lanchonete do farol. Em seguida, foram visitar as ruínas do mosteiro. Sobraram apenas os grandes arcos de tijolo batido e as antigas divisões. André não podia entender como algo tão importante podia ser abandonado daquele jeito. Como as autoridades podiam odiar tanto sua história, seu país e seu povo, para deixar todo aquele patrimônio ali, se acabando. Da janela da igreja, podia-se ver o novo farol na sua brancura contrastando com o verde da mata. Ao fundo, o azul do mar. O mais provável é que aquela natureza seja destruída, um dia, e que aquelas ruínas nunca sejam restauradas.
Foram jantar em um barzinho simples, de um nativo amigo de seu irmão. O bar ficava no “vale da lua”. Na realidade, era uma casa de taipa em que o dono colocou uma mesa grande de madeira no terreiro, embaixo das árvores, onde servia as refeições. Se alguém vai almoçar, pode até mesmo escolher a galinha que quer comer entre as que passeiam no terreiro. Comeram galinha á cabidela, só não puderam escolher, pois já era noite. Conversaram sobre poesia, pintura, música e política. O irmão de André estava trabalhando no seu próximo livro de poemas e falaram sobre isto. Patrícia estava belíssima! Seus olhos ficavam ainda mais verdes, sempre que pegava sol, e sua pele estava bronzeada e algo brilhava diferente nela depois daquela noite. Estava tão feliz, falava e sorria, conversava com a esposa do irmão de André, mas sempre olhava para André e sorria e voltava a conversar.
André acordou no meio da noite e percebeu que Patrícia não estava ao seu lado. Levantou-se, procurou pela casa e não a encontrou. Ficou preocupado, pois ela tinha medo de andar só em lugares desconhecidos. E perguntava-se: o que será que aconteceu? Súbito, viu que a janela da casa estava aberta. Correu ao quarto do seu irmão e lhe pediu o revólver emprestado. Seu irmão perguntou o que estava acontecendo e ele não falou. Disse que pretendia dar uma volta e não gostaria de ir desarmado.
Quando saiu de casa, o vento soprava para um lado estranho, em direção ao mar, no sentido do farol. Então, sem saber por que, caminhou para lá, passou pela igreja e continuou... passou pelo farol novo e chegou ao descampado. Então pôde ver alguém deitado. Empunhou o revólver 38, que tinha sido de seu pai e agora era de seu irmão e foi se aproximando devagar. Quando chegou perto, a pessoa sentou e olhou para trás: era Patrícia. André correu em sua direção e ajoelhou-se ao seu lado. Ela estava enrolada em um cobertor.
— Minha princesa!
— Oi, meu amor.
— O que está fazendo aqui sozinha? É perigoso!
— Não tenho mais medo.
— Não me chamou por quê?
— Você estava dormindo tão bem, não quis te acordar.
Ela passou o braço sobre ele e o cobriu também com o cobertor. Agora estavam sentados juntos sob o mesmo cobertor.
— Não faça mais isso. Quase me matou do coração.
Os dois ficaram ali olhando o horizonte, sendo iluminados de tempo em tempo pela luz do farol, com suas sombras indo e vindo com a luz, que muito longe avisava aos navegantes da presença daqueles rochedos milenares. De súbito, viram pequenos vultos correndo mata adentro, e conseguiram ver então os famosos cães selvagens. Um deles parou a uns vinte metros e olhou para eles. Em seguida, o que lhes pareceu uma cadela também chegou: os dois pareciam jovens cães. De repente, um uivo, e os cães olharam em direção deles. Parecia um chamado e os animais sumiram na mata.


A Gravidez
barriga crescia rapidamente. Patrícia estava ainda mais bonita grávida. Todos os seus planos teriam que ser antecipados, já que não esperavam ter um filho naquele momento. Quando ela lhe falou, André ficou muito feliz: era um sonho ter um filho com ela.
Nos finais de semanas, sempre iam para a Barra de Santo Antônio, e caminhavam para o lado mais ermo da praia para que Patrícia pudesse bronzear seus seios. E era inevitável fazerem amor. Ela estava radiante, estava feliz, e a felicidade contagiava todos que estavam ao seu lado.
Conversou com Patrícia sobre o primeiro filho. André sugeriu que morasse com eles, mas ela havia conversado com o garoto, e ele resolvera continuar morando com os avós.
André sempre acompanhava Patrícia às consultas do pré-natal. Certo dia chegou um pouco atrasado, e ela já havia entrado para fazer a ultrassonografia. Na sala de espera, encontrou uma colega de faculdade de Patrícia, com quem ele tinha tido um pequeno flerte, quando treinavam natação na faculdade. Era uma moça bonita, cabelos castanhos pouco acima dos ombros, corpo bronzeado, pernas longas e proporcionais ao seu bumbum.
— Oi, André, ficou bem de barba – disse Renata.
— Obrigado. Está trabalhando aqui?
— Estou. Já tem um bom tempo.
— Nunca a havia encontrado antes.
— É que estava de férias. Voltei há duas semanas.
— Ah! Foi por isso.
— Mas, quando voltei, soube que Patrícia estava fazendo o pré-natal aqui. E que você sempre a acompanhava.
— É, sempre estou com ela.
— Sempre?
— Não entendi?
— Sempre, em todos os momentos? – sorriu.
— Mais ou menos – e deu um pequeno sorriso.
— Poderíamos tomar um chope.
— Não seria perigoso?
— Não! Seria prazeroso.
— Você não casou? Era noiva, não era? – pensou: não acredito que isso está acontecendo, ela era toda séria na aula e agora...
— Sim, mas acabamos o noivado.
— Lamento.
— Eu não, ele era um otário, só pensava em carro e dinheiro. Olhe, André, sempre me excitava quando te via na piscina, e ficava pensando, mas tinha medo que você falasse para alguém se ficássemos juntos. Mas agora...
— Agora tudo está diferente.
— Como estava falando, só depois soube da sua fama. Uma amiga me falou que transou com você no laboratório de Química. Fiquei louca, mas já não tinha mais contato com você. E fiquei com medo de pedir seu telefone para sua cunhada e ela notar algo.
— É verdade, você trabalha com minha cunhada.
— É, mas ela não gosta muito de você. Já a ouvi falando que você era mulherengo. Então não tive coragem.
André lembrou então que a irmã mais velha de Patrícia trabalhava no mesmo hospital que Renata.
— Podemos ir almoçar qualquer dia no “BEM”. Tenho as tardes de quinta-feira livres.
— Renata, você continua linda! E muito atraente, mas...
— Vamos só conversar.
— Sabe que não sou homem de só conversar... Se fosse à época da faculdade, mas hoje as coisas mudaram. Não estou mais assim, não sinto vontade, não penso. Além do mais, Patrícia está grávida e estamos muito felizes.
— Liga-me se mudar de ideia
Renata colocou um cartão no bolso de André e o beijou no canto da boca. Olhou por sobre o ombro dele e viu quem chegava
— Oi, Patrícia, há quanto tempo?
Patrícia saía da sala por trás de André. Estava sorrindo. André virou-se e estendeu a mão para ela, e a beijou.
—Oi Renata! Você está linda!
— Obrigada! Soube que estava aqui e vim lhe ver.
— Princesa, preciso ir? – disse André. – Renata, foi um prazer revê-la.
— O prazer foi meu.
— Tchau, Renata – disse Patrícia.
André abraçou Patrícia e, ao sair do hospital, jogou o cartão em uma lixeira. Patrícia viu, olhou para ele, sorriu e o beijou.
A gravidez estava muito boa e suas vidas continuaram normais. Por isso, sempre saíam para dançar. No São João foram os noivos. A única coisa que mudou é que Patrícia não estava bebendo por conta da gravidez, é óbvio. André havia sido promovido após terminar sua especialização e recebera um convite para trabalhar na FIOGRUZ, no Rio de Janeiro. Mas não aceitara, pois pretendia viver com sua família de forma mais tranquila e tudo estava perfeito para uma mudança desse nível.


O Parto
Estavam morando no apartamento da mãe de André. A noite estava muito quente. Patrícia, então, abriu as janelas e, por volta da meia-noite, o acordou.
— Querido, estou sentindo muitas dores.
— Quer algum remédio?
— Não. Quero que ligue para o Doutor.
— Claro. Acha que está na hora?
— Acho que não. Ainda falta um mês.
— Vou ligar para o médico?
— Sim, acho melhor.
André ligou para o médico e contou-lhe da situação de Patrícia, informando-lhe o intervalo das dores e descrevendo-as detalhadamente. O médico mandou que a levasse imediatamente para o hospital. André arrumou rapidamente o que ela precisaria e saíram. No caminho, as dores aumentaram e ele começou a ficar preocupado. Chegou ao hospital com Patrícia nos braços. As enfermeiras já haviam sido avisadas pelo médico e a esperavam. Imediatamente a colocaram em uma maca e a levaram. André as acompanhou.
— Não fique preocupado, querido.
— Não estou.
— Fico triste por estar te deixando assim.
— Não está.
— Boa-noite! – disse o médico. – Quer dizer que o rapaz está com pressa?
— Boa-noite, doutor – respondeu Patrícia. – Acho que é aperreado feito o pai.
— Vamos ver o que está acontecendo, oito meses não é problema.
— Querido, vá comer alguma coisa – disse Patrícia.
— Não estou com fome, vou ficar aqui.

Estava demorando muito e André estava preocupado. Depois de um bom tempo, ele procurou uma enfermeira para buscar informações. Ela então saiu e voltou com o médico.

— Algum problema, doutor?
— Não, tudo bem, mas ela não está tendo dilatação suficiente.
— E então?
— Vamos aguardar mais um pouco e estimulá-la para aumentar a dilatação.
— É normal?
— Pelo tempo das contrações, era para estar com maior dilatação, mas não faremos nada nas próximas duas horas. O senhor quer vê-la.
— Claro!
E André foi junto com o médico para vê-la.
— Meu amor! Que bom que está aqui – disse ao avistar André.
— Como está?
— Com muitas dores.
Neste momento, ela fez uma expressão de dor.
— Esta foi grande.
— Não se aflija, meu amor – disse olhando para André. – Vá comer alguma coisa, eu vou ficar bem.
— Quero ficar aqui.
— Não vai adiantar nada e, quando chegar a hora, vai estar muito cansado para ficar com ela e com seu filho – disse o médico.
— Isto demora – disse a enfermeira –, são dores preliminares.
— Vai, meu amor. Sua presença está me deixando preocupada e quero ser uma boa mulher e ter nosso filho sem alvoroço. E não vai me ajudar em nada aqui; vai comer alguma coisa e bebe algo também, que vai te deixar mais tranquilo, e não se preocupe. Estou em boas mãos, vai, mas volta.
— Está bem.
— Pode ir e comer sem pressa – disse o médico –, tem um café aqui ao lado do hospital, e já deve estar aberto.

O dia já estava clareando. André encontrou o café rapidamente com as instruções do doutor, mas estava vazio. Sentou-se em uma pequena mesa, e percebeu então que só havia um senhor atendendo no balcão. Então se dirigiu a ele.
— Bom-dia, senhor!
— Bom-dia, meu jovem! O que faz a esta hora na rua?
— Minha mulher está para ter menino ali no hospital.
— Ah! Boa sorte!
— Obrigado, gostaria de comer alguma coisa, mas gostaria também de beber algo, sei que é muito cedo...
— Mas é uma ocasião especial – interrompeu o senhor –, tenho aqui um vinho que bebo quando as noites estão frias. Vou servi-lo com pães e um bom queijo do sertão.
— Muito obrigado!
Bebeu o vinho e comeu pães com queijo, que estava pouco salgado, macio e dividia-se em pequenos pedaços na boca. Tudo estava muito gostoso, apesar de André não comer muito, mas gostava muito daquele tipo de queijo. As ruas ainda estavam desertas. Apenas um gato perambulava pela rua, como quem havia voltado de uma boa farra, totalmente despreocupado.
Chegou ao hospital e se dirigiu ao quarto de Patrícia. Bateu na porta e em seguida entrou, mas estava vazio. Saiu então e encontrou uma enfermeira que estava de plantão naquele andar, e ela o informou que sua esposa havia ido para sala de parto, e que uma auxiliar o levaria até o local.
Quando chegou ao local, outra enfermeira lhe deu uma roupa azul, para que ele trocasse. Só assim, poderia entrar, mas foi interrompido pelo médico.
— Preciso dos últimos exames que ela fez no outro hospital – disse-lhe o médico. – O senhor sabe onde se encontram?
— Sim, vou buscar imediatamente.
— Vai devagar. Está tudo bem, e preciso que chegue com eles – brincou. – Dirija como se já estivesse com seu filho do lado, com cuidado.
— Claro, doutor! Estou indo.
Foi rapidamente descumprindo o acordo com o doutor. Pegou os exames e procurou a pequena garrafa portátil de uísque, mas estava vazia. Não esperava precisar dela naquele dia, mas como poderia suportar tudo aquilo com apenas dois copos de vinhos? Na volta para o hospital, parou e comprou uma pequena garrafa de uísque e já começou ali mesmo a bebê-la. Ao chegar ao hospital, entregou os exames e se preparou para entrar, vestindo as roupas azuis que lembravam pijamas, e entrou.
— Como está princesa? – disse André.
— Não estou muito bem.
— Está tudo bem – disse o médico.
— Desculpa, meu amor! Pensei que era mais forte, mas não estou aguentando de dor. Estou te decepcionando.
— Nunca, minha princesa! – seus olhos se encheram de lágrimas. – Estou aqui – e apertou-lhe a mão.
Mas parecia que era ela que o apoiava. André sentiu que suas pernas não iam suportar o peso do seu corpo; sentiu-se fraco, mas tinha que reagir, não podia deixá-la ainda mais nervosa. Nunca tinha tido tanto medo em sua vida antes. Beijou Patrícia na testa e disse-lhe que a amava. O médico percebeu sua situação.
— Vamos tomar um cafezinho, meu caro. Ela está em boas mãos.
— É, meu amor, as meninas são ótimas – disse se referindo às enfermeiras. – Vou ficar bem.
Uma das enfermeiras tinha sido contemporânea dele na faculdade, e o tranquilizou. Ficaria com ela, apesar de já ter terminado seu turno, não iria perder este momento.
André saiu da sala, tomou o cafezinho com o doutor, que voltou em seguida. Na verdade, só queria mesmo tirá-lo de lá. E explicou-lhe que era melhor ele não assistir o parto, pois pelo que vira seria mais um para cuidar na hora. Ele concordou, e o médico disse que explicaria para Patrícia, e voltou.
Ele agora se lamentava. Ela estava passando por tudo isso graças aquelas noites em Nazaré. Nunca pensou que aqueles momentos de amor e prazer poderiam causar-lhe tanto sofrimento. Como poderia ser assim? As lágrimas cobriam seu rosto. Como momentos de tanto prazer podiam resultar em tanta dor? Logo ela que tinha tido uma gravidez tão tranquila, e tinha sido tão feliz ao lado dele naqueles últimos meses. Por que tudo isso estava acontecendo?
Viu o médico saindo e conversando com outro e com a enfermeira conhecida de Patrícia. Em seguida se dirigiu a ele.
— Tudo bem, doutor?
— Não muito bem. Sua mulher não está dilatando como deveria. Vamos precisar fazer uma cesariana.
— E qual é o risco?
— De uma cirurgia, e uma recuperação mais complicada e dolorosa.
— Desculpe-me, ela vai ficar boa?
— Sim, uma cicatriz e uma recuperação lenta.
André já estava terminando a garrafinha de uísque e se arrependendo de só ter comprado uma. Tinha ficado mais calmo, mas esta nova notícia o deixara novamente apreensível. Por que se preocupar, se ninguém morre mais de parto nestes tempos? Mas, e se ela morrer! Não devia pensar assim, deveria pensar que tudo ia dar certo. Bebeu o resto da garrafinha e perguntou onde ficava a capela do hospital. Lá, pediu a Deus que tudo desse certo, prometeu ser um homem melhor, e faria tudo para melhorar. Voltou então para a sala de espera.
Só quando voltara do café foi que Patrícia pediu-lhe para avisar sua família. Queria fazer uma surpresa, já que ninguém esperava o parto naquele momento. Mas, com o surgimento desses problemas, ela resolvera pedir para avisar. Então, quando André saiu da capela, a mãe de Patrícia e a irmã Cecília já estavam na sala de espera.
— O que houve? – perguntou Cecília.
— Patrícia não queria que avisasse vocês antes do menino nascer.
— Mas isso é um absurdo! – disse a mãe.
— Eu quis ligar, mas faço a vontade dela. E tudo que pode ser feito está sendo.
— Você não vai entrar? – indagou Cecília.
— Não, você poderia entrar e ficar com ela, Cecília? O médico me tirou de lá.
— Eu vou então. Mãe, a senhora fica aqui.
O tempo parecia não passar. Os minutos eram longos. Então André pôde ver duas enfermeiras empurrando uma cama: Patrícia deitada e Cecília do lado segurando sua mão.
— Ela está bem?
— Sim! – respondeu a enfermeira.
— Como está nosso filho? – perguntou Patrícia.
— Não o vi ainda – disse.
André olhou para Cecília e viu lágrimas em seus olhos.
 As enfermeiras a levaram por uma área exclusiva. Fizeram a volta e foram para o quarto que havia sido preparado para Patrícia. Quando chegou, Cecília estava na porta.
— Como ela está?
— Dormindo.
— O que há com meu filho? Não ouvi o choro.
— Não sabe? – Cecília começou a chorar e o abraçou. – Ele não sobreviveu. Lamento, André.
— Não! Meu Deus!
— Ele não sofreu, nasceu morto, e Patrícia não sabe.
Nesse momento, o alarme do plantão tocou. Uma enfermeira e o médico correram para o quarto de Patrícia, e a levaram novamente para o centro cirúrgico. Ela sentia dor, estava acordada e sentia muita dor no abdome. Depois de algum tempo, lá de dentro o médico saiu e informou a todos que ela esta com hemorragia.
— Meu Deus! – pensou. – Perdi meu filho, não posso perder minha mulher. O que vou fazer?
— Estamos fazendo todo o possível – disse o médico. – Ela quer vê-lo.
— Posso?
— Vamos.
— Meu amor – disse Patrícia, com voz muito fraca.
— Vai ficar boa.
— Não, meu amor! Estou morrendo. É uma pena! Ainda tínhamos tanto o que viver.
— Não! Não vai – ele não conseguia segurar o pranto. – Eu te amo!
— Também te amo! Mas você tem que ser forte. Cuida do nosso filho.
— Cuidaremos, nós dois juntos.
— Será que vai ter com outra mulher tudo que vivemos?
— Nunca!
— Será que falará aquelas coisas lindas que me falava? Será?
— Nunca! Nosso amor é único. Não fala assim, você não vai morrer, temos muito que fazer ainda.
— Estou muito cansada, quero que saia agora e reze por mim, para que eu tenha uma boa morte.
Patrícia suspirou e fechou os olhos. André não podia acreditar. Ajoelhou e desabou em pranto, e uma dor terrível invadiu seu peito. As suas vistas escureceram por um momento, mas recuperou a visão e olhou para Patrícia. Ela não aparentava mais a fisionomia de dor, seu rosto estava pálido, mas parecia em paz. André teve a impressão de que ela estava dormindo. Súbito, uma luz entrou em seus olhos e ele a viu sorrindo como no primeiro dia quando se conheceram, ainda adolescentes. Ela, vestida de blusa branca, com aqueles olhos verdes brilhantes, estava linda!
André não voltou para o apartamento. Fora à casa de sua mãe, e todos os seus irmãos estavam lá. Mas não falou com ninguém. Passou direto para o quarto dos fundos, onde ele e Patrícia fizeram amor pela primeira vez. Não pôde conter as lágrimas. Apesar de ser outubro, caía uma chuva torrencial. Sentou na cama e olhou o vazio. A cadela que eles resgataram na rua entrou, sentou ao seu lado e “sorriu”.
FIM

  
*Daniel Barros, 45, escritor e fotógrafo alagoano residente em Brasília, é autor dos romances O sorriso da cachorra, Thesaurus, 2011, Enterro sem defunto, Editora LER, 2013, Coletânea Contos Eróticos e Contos Sobrenaturais Enquanto a Noite Durar editora APED, 2014. Membro da Associação Nacional dos Escritores – ANE - e do Sindicato dos escritores do DF. 
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