No meio do caminho de Eugênio Giovenardi
Quando soube que o escritor Eugênio Giovenardi ia
lançar uma biografia, fiquei muito animado e me preparei para a leitura. Sem
perda de tempo, queria me deleitar com a nova obra do nobre escritor, que, dono
de uma inteligência privilegiada, sabe transferir para os livros sua
excepcional capacidade de observação. Após viajar pelo sertão nordestino com a
triste saga de Heliodara (2010) e pelo belo convívio
com As árvores falam (2012), esperei
encontrar em No meio do caminho (editora
Movimento, 2014) a tradicional história de um homem, as brincadeiras de
criança, o convívio familiar, as inquietudes da adolescência; enfim, a
tradicional biografia. Mas, para a minha agradável surpresa, encontrei muito
mais nas 176 páginas deste intrigante volume.
O que pude perceber foi uma relação íntima do autor
de Silêncio (2011), com os dogmas e a cultura da
igreja católica, que lhe foram incutidos desde o nascimento. Descendendo de
família italiana — como se percebe pelo sobrenome Giovanardi, que foi
aportuguesado para Giovenardi —, o berço da poderosa Igreja Católica, o menino
vê aumentada ainda mais a influência da religião sobre a família. Com a mestria
que lhe é peculiar, Eugênio faz um paralelo entre sua vida e a igreja e a rotina
da igreja e a vida. Depara-se com imprecisões que não lhe são esclarecidas,
apenas colocadas como dogmas que não devem ser questionados, sob pena de estar
cometendo grave pecado, pois, mesmo não expondo ou declarando, tudo pode ser
visto e ouvido; portanto, passível de castigo. A luta interna para livrar sua
mente dessas amarras, é deveras dolorosa; a dor que parece transpassá-lo nos
atinge em cheio, como leitores. Sem dúvida, uma leitura visceral, sobretudo
para mim que, também, tenho formação católica. São conflitos que muitos de nós
não temos a determinação de enfrentar, mas que Eugênio teve, e com bastante
coragem. E, neste livro sincero, resolveu nos revelar grande parte desses
conflitos, bem às vésperas de completar os seus oitenta anos. Diferentemente
das pessoas que apenas se contentam com ritos e celebrações da igreja, Eugênio
pergunta para si mesmo: “Por que preciso de um Deus em minha vida?”; e como “A
consciência é um árbitro implacável”, ele, com clareza, nos revela algumas das respostas
que pacificaram o seu espírito.
Tão marcante foi o convívio e a relação com a igreja
que, passados cinquenta anos de sua pacificação, todas essas marcas podem não
ter desaparecido por completo. Ou será que as minhas próprias convicções
nublaram a clareza de minha interpretação? Entretanto, busco no próprio autor
amenizar minha consciência e meu medo: “Penso que sejam as dúvidas que me fazem
viver e sobreviver.” A cada imprecisão, uma luta do leitor para tentar
combater internamente o que lê. Diante de tantas agruras nos deparamos com o
prazer imensurável sentido pelo autor ao se libertar das imposições e da
crença, de poder questionar sem temer respostas, como fez Anísio Teixeira.
Sentimos a sensação de um voo único e novo dentro da multidão em plena Paris. E como
se não bastasse: “De repente, Paris se esvaziou. Silenciaram as manifestações
de protestos. Agora éramos os únicos habitantes da cidade.” O ano era 1968 e,
em plenas barricadas, surge numa esquina a jornalista finlandesa (dona Hilkka Mäki) que buscou sua opinião
sobre a então situação política vivida pela França. Desse encontro se inicia
uma caminhada longa e duradoura. Quebrando mais um paradigma da igreja, onde a
mulher é acusada de tantos males.
Outra característica marcante que me remete aos
clássicos franceses, como Stendhal, são as citações utilizadas pelo autor, como
Carl Sagan, onde “É permitido não ter certeza”, Agostinho de Hipona, santo,
filósofo e teólogo do início do cristianismo, T. S. Eliot, “A cultura de um
povo é a encarnação de sua religião”, Fiódor Dostoievski: “Se Deus não existe,
tudo é possível”, Derek Walcott: “É ilusório pensar que seja possível
prescindir dela (religião) ou ser indelevelmente formado por ela.” Tais
citações mostram que tantos já se debruçaram sobre tais temas, mas, mesmo sendo
tão discutido, Eugênio consegue nos surpreender e instigar o pensamento.
Sem dúvida, No meio do caminho é
um livro polêmico, intrigante e profundo. E demonstra um elevado nível
filosófico e literário. Escrito de forma madura por quem chegou a um alto nível
de conhecimento, de vida e de domínio da técnica literária, pautada na leitura
e na vivência plena de um observador nato. Surpreende, pois como já foi dito, a
fuga da forma habitual como são escritas as biografias, enriquece ainda mais a
obra, que abre um horizonte incógnito e íntimo. Um mundo secreto, apesar de
aparentemente conhecido. É como se percorrêssemos todos os dias uma floresta,
por suas trilhas mais diversas e, de súbito, saíssemos do caminho conhecido
para nos depararmos com o interior da selva, e passássemos a enxergá-la, desde
a visão microscópica à amplitude das copas frondosas de uma complexa mata
espessa. Uma viagem para poucos que não tenham medo de se perder na
imensidão das certezas e das dúvidas.
Como um clássico, é impossível terminarmos a leitura
sem sairmos marcados pelo surpreendente mundo que nos foi apresentado pelo
mestre Eugênio Giovenardi.
Daniel
Barros, 46 anos, alagoano de Maceió. Foi colaborador em O
jornal e Gazeta de Alagoas, na década de 1990. É engenheiro
agrônomo formado pela Universidade Federal de Alagoas no ano 1992. Em Brasília,
desde o fim dos anos 1990, onde pós-graduou-se em Segurança Pública e iniciou
sua carreira literária publicando: O sorriso da cachorra,
romance, editora Thesaurus, Brasília 2011; Enterro sem defunto,
romance, LER editora, Brasília 2013. Participa das coletâneas: Contos
eróticos, editora APED, Rio de Janeiro, 2013; e de Enquanto a
noite durar, contos sobrenaturais, editora APED, Rio de Janeiro 2013. É
membro da Associação Nacional de Escritores-ANE.
Daniel Barros, além de bom escritor é tb. atento leitor.
ResponderExcluirAgradeço leitura e a difusão de minhas confidências No meio de caminho.