Por ainda acreditar na possibilidade de um mundo mais justo, onde seja possível o acesso de todos os humanos às condições básicas para uma vida com dignidade, compartilho aqui pensamentos que apontam para a possibilidade de uma presença mais relevante do espaço da pluralidade humana, especialmente no cotidiano de nossas cidades.
Quando
se fala a partir do Brasil, não é fácil ser portador de uma mensagem de
esperança. Permanecermos na mesma posição no ranking do IDH – Índice de
Desenvolvimento Humano. Entre 177 países, o Brasil
está na 63ª posição. É um lugar incômodo para um país que detêm uma das maiores
economias do mundo. Nesse cenário sócio-econômico, um dos principais problemas
é a concentração de riqueza: quase 50% da renda nacional está nas mãos de
apenas 10% da população. Além do quadro social crítico que se manifesta de
forma mais visível nas cidades, especialmente nas metrópoles, convivemos também
com um cenário político desalentador com tantas denúncias de corrupção
envolvendo todos os poderes da República – judiciário, executivo e legislativo.
Diante
desse quadro, são comuns as manifestações de espanto, raiva, desânimo e
decepção. Dá vontade de chorar. Podemos afirmar que o Brasil está de luto.
Rubens Alves, ao escrever sobre a recente crise política brasileira, falou
sobre esse sentimento:
Choramos... D. Miguel de Unamuno, filósofo espanhol que Guimarães Rosa muito amava, disse que“o que existe de mais sagrado num templo é o fato de ser o lugar aonde se vai chorar em comum. Um Miserere cantado em coro por uma multidão açoitada pelo destino vale tanto quanto uma filosofia”. Creio que ele me permitiria uma inversão. Eu diria: “Um lugar aonde se vai chorar em comum, qualquer que seja, transforma-se num templo”. Em que templo enorme se transformou o Brasil! Só nos falta um poeta que nos componha um Miserere para cantarmos!”
Por
mais legítimo e necessário que seja, esse choro coletivo deve nos levar a uma
ação restauradora e não à prostração. Nessa direção, trago à memória a oração
pela cidade, escrita em 1910, por Walter Raushenbush, principal criador e
articulador da Teologia do Evangelho Social, teólogo-pastor que soube conjugar
adequadamente o amor a Deus e o amor ao mundo. Assim como Jesus chorou diante
de Jerusalém, Rauschenbush também deve ter chorado diante da situação de sua
cidade, pelo menos é o que podemos inferir ao ler a sua oração pela cidade:
“Ó Deus, oramos pela cidade que amamos
e da qual nos orgulhamos. Alegramo-nos com sua beleza e seu comércio, suas
lojas e suas fábricas, seus mercados e suas feiras – onde todos se juntam a trabalhar;
e com seus lares – onde as pessoas se encontram para o repouso e o amor.Ajuda-nos
a fazer com que a nossa cidade seja a oficina comum do nosso povo, onde cada um
poderá achar seu lugar e sua missão para assim construir diariamente sua vida,
dando com suas mãos e sua mente aquilo que de melhor tem. Ajuda-nos também a
fazer de nossa cidade o grande lar do nosso povo, onde todos poderão viver suas
vidas com conforto, sem medo, em paz e amando uns aos outros.Une nossos
cidadãos não só pelo elo do dinheiro e do lucro, mas também pela boa vontade
comunitária, pela emoção de alegrias comuns, e com o orgulho de seus bens
comuns. Quando formos traçar as metas grandiosas para o futuro de nossa cidade,
permite que lembremos sempre que a sua verdadeira riqueza e grandeza consistem
não só na abundância daquilo que possuímos, mas também na justiça das
instituições e na irmandade dos que nela habitam. Torna-a rica com seus filhos
e filhas e que fique famosa através das paixões grandiosas que os inspiram.Somos-te
gratos pelos homens e mulheres do passado que, pela sua generosa devoção ao bem
comum, foram os pilares de nossa cidade. Permite que nossa geração possa
continuar dignamente a construir sobre os fundamentos que eles lançaram. Se, no
passado, houve quem tivesse se enriquecido pela apropriação indevida dos bens
públicos, manchando assim a honra da cidade por causa de sua ganância, dá-nos,
nós te pedimos, a raiva justa de cidadãos, para que possamos expurgar essa
vergonha e ela não venha a macular os anos futuros. Dá-nos uma visão de nossa
cidade, bela como deverá ser: cidade onde impere justiça, onde um não será
vítima de outro; cidade de abundância, onde o vício e a pobreza não mais
existirão; cidade fraterna, onde os empreendimentos terão como fundamento o
serviço ao povo e as honras serão dadas somente aos que são realmente
merecedores delas; uma cidade pacífica, onde a ordem não reinará pela força, e
sim pelo amor de todos pela cidade, que é a grande mãe da comunidade. Escuta, ó
Deus, as orações silenciosas de todos os nossos corações, enquanto devotamos
nosso tempo, forças e pensamentos para que chegue logo o dia em que ela se
tornará bela e justa. Amém.(Oração pela Cidade – Walter Rauschenbush, 1910)”
É
uma oração que, mesmo tendo sido escrita há quase um século, expressa ainda
muitos dos nossos desejos e frustrações com relação ao espaço urbano. Uma
leitura mais atenta dessa oração revela, pelo menos, cinco categorias de
análise: a cidade como espaço da produção material da vida; a cidade como lugar
da manifestação da singularidade; a cidade como espaço da reunião dos cidadãos
e cidadãs em projetos comuns; a cidade como espaço da manifestação objetiva da
justiça e a cidade como espaço da expressão religiosa. Assim, para Raushenbush,
a cidade se abre à possibilidade humana da expressão do trabalho, da
religiosidade e da governança. Segundo ele, essas formas de expressão do humano
são balizadas na justiça, na memória e no amor, parâmetros para a ordenação de
um espaço comum onde se expressa a pluralidade e singularidade humana.
Para
explicitar essa tríade, retomo as palavras do autor:
“Se, no passado, houve quem tivesse se
enriquecido pela apropriação indevida dos bens públicos, manchando assim a
honra da cidade por causa de sua ganância, dá-nos, nós te pedimos, a raiva
justa de cidadãos, para que possamos expurgar essa vergonha e ela não venha a
macular os anos futuros. Dá-nos uma visão de nossa cidade, bela como deverá
ser: cidade onde impere justiça, onde um não será vítima de outro; cidade de
abundância, onde o vício e a pobreza não mais existirão; cidade fraterna, onde
os empreendimentos terão como fundamento o serviço ao povo e as honras serão
dadas somente aos que são realmente merecedores delas; uma cidade pacífica,
onde a ordem não reinará pela força, e sim pelo amor de todos pela cidade, que
é a grande mãe da comunidade.”
Em
estreita relação com a tríade – justiça, memória e amor – há, nesse trecho da
oração, duas afirmações que nos chamam a atenção.
A
primeira, quando ele pede: “dá-nos, nós te pedimos, a raiva justa de cidadãos”.
O
que seria para nós hoje a raiva justa de cidadãos?
Entendemos que a “raiva justa” que
Rauschenbush busca em sua oração se traduz num forte sentimento de indignação
que possa levar os cidadãos e cidadãs ao exercício de uma cidadania mais plena,
por meio de uma fé cidadã e não ao conformismo ou à alienação.
A segunda afirmação está na expressão: “dá-nos
uma visão de nossa cidade, bela como deverá ser”. Aqui se reflete a dimensão da
experiência cristã. Aponta para um mundo restaurado pela manifestação da Graça
de Deus.
Participar
ativamente do espaço público exige da Igreja – não como corpo abstrato enquanto
instituição social, mas corpo vivo formado por cidadãos e cidadãs – a junção ou
a articulação destes dois elementos: uma “raiva justa de cidadãos” e uma
“visão” para as nossas cidades. É a necessária articulação entre a cidadania
ativa e a utopia.
Para
isso, é sempre necessário acreditar que dias melhores virão.
Excelente texto, com uma mensagem linda em prol da humanidade!!! Parabéns!
ResponderExcluirAgradeço as palavras minha querida.
ResponderExcluir