quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Por Amor ao Mundo



Por ainda acreditar na possibilidade de um mundo mais justo, onde seja possível o acesso de todos os humanos às condições básicas para uma vida com dignidade, compartilho aqui pensamentos que apontam para a possibilidade de uma presença mais relevante do espaço da pluralidade humana, especialmente no cotidiano de nossas cidades.

Quando se fala a partir do Brasil, não é fácil ser portador de uma mensagem de esperança. Permanecermos na mesma posição no ranking do IDH – Índice de Desenvolvimento Humano. Entre 177 países, o Brasil está na 63ª posição. É um lugar incômodo para um país que detêm uma das maiores economias do mundo. Nesse cenário sócio-econômico, um dos principais problemas é a concentração de riqueza: quase 50% da renda nacional está nas mãos de apenas 10% da população. Além do quadro social crítico que se manifesta de forma mais visível nas cidades, especialmente nas metrópoles, convivemos também com um cenário político desalentador com tantas denúncias de corrupção envolvendo todos os poderes da República – judiciário, executivo e legislativo.

Diante desse quadro, são comuns as manifestações de espanto, raiva, desânimo e decepção. Dá vontade de chorar. Podemos afirmar que o Brasil está de luto. Rubens Alves, ao escrever sobre a recente crise política brasileira, falou sobre esse sentimento:

Choramos... D. Miguel de Unamuno, filósofo espanhol que Guimarães Rosa muito amava, disse que“o que existe de mais sagrado num templo é o fato de ser o lugar aonde se vai chorar em comum. Um Miserere cantado em coro por uma multidão açoitada pelo destino vale tanto quanto uma filosofia”. Creio que ele me permitiria uma inversão. Eu diria: “Um lugar aonde se vai chorar em comum, qualquer que seja, transforma-se num templo”. Em que templo enorme se transformou o Brasil! Só nos falta um poeta que nos componha um Miserere para cantarmos!”

Por mais legítimo e necessário que seja, esse choro coletivo deve nos levar a uma ação restauradora e não à prostração. Nessa direção, trago à memória a oração pela cidade, escrita em 1910, por Walter Raushenbush, principal criador e articulador da Teologia do Evangelho Social, teólogo-pastor que soube conjugar adequadamente o amor a Deus e o amor ao mundo. Assim como Jesus chorou diante de Jerusalém, Rauschenbush também deve ter chorado diante da situação de sua cidade, pelo menos é o que podemos inferir ao ler a sua oração pela cidade:

“Ó Deus, oramos pela cidade que amamos e da qual nos orgulhamos. Alegramo-nos com sua beleza e seu comércio, suas lojas e suas fábricas, seus mercados e suas feiras – onde todos se juntam a trabalhar; e com seus lares – onde as pessoas se encontram para o repouso e o amor.Ajuda-nos a fazer com que a nossa cidade seja a oficina comum do nosso povo, onde cada um poderá achar seu lugar e sua missão para assim construir diariamente sua vida, dando com suas mãos e sua mente aquilo que de melhor tem. Ajuda-nos também a fazer de nossa cidade o grande lar do nosso povo, onde todos poderão viver suas vidas com conforto, sem medo, em paz e amando uns aos outros.Une nossos cidadãos não só pelo elo do dinheiro e do lucro, mas também pela boa vontade comunitária, pela emoção de alegrias comuns, e com o orgulho de seus bens comuns. Quando formos traçar as metas grandiosas para o futuro de nossa cidade, permite que lembremos sempre que a sua verdadeira riqueza e grandeza consistem não só na abundância daquilo que possuímos, mas também na justiça das instituições e na irmandade dos que nela habitam. Torna-a rica com seus filhos e filhas e que fique famosa através das paixões grandiosas que os inspiram.Somos-te gratos pelos homens e mulheres do passado que, pela sua generosa devoção ao bem comum, foram os pilares de nossa cidade. Permite que nossa geração possa continuar dignamente a construir sobre os fundamentos que eles lançaram. Se, no passado, houve quem tivesse se enriquecido pela apropriação indevida dos bens públicos, manchando assim a honra da cidade por causa de sua ganância, dá-nos, nós te pedimos, a raiva justa de cidadãos, para que possamos expurgar essa vergonha e ela não venha a macular os anos futuros. Dá-nos uma visão de nossa cidade, bela como deverá ser: cidade onde impere justiça, onde um não será vítima de outro; cidade de abundância, onde o vício e a pobreza não mais existirão; cidade fraterna, onde os empreendimentos terão como fundamento o serviço ao povo e as honras serão dadas somente aos que são realmente merecedores delas; uma cidade pacífica, onde a ordem não reinará pela força, e sim pelo amor de todos pela cidade, que é a grande mãe da comunidade. Escuta, ó Deus, as orações silenciosas de todos os nossos corações, enquanto devotamos nosso tempo, forças e pensamentos para que chegue logo o dia em que ela se tornará bela e justa. Amém.(Oração pela Cidade – Walter Rauschenbush, 1910)”

É uma oração que, mesmo tendo sido escrita há quase um século, expressa ainda muitos dos nossos desejos e frustrações com relação ao espaço urbano. Uma leitura mais atenta dessa oração revela, pelo menos, cinco categorias de análise: a cidade como espaço da produção material da vida; a cidade como lugar da manifestação da singularidade; a cidade como espaço da reunião dos cidadãos e cidadãs em projetos comuns; a cidade como espaço da manifestação objetiva da justiça e a cidade como espaço da expressão religiosa. Assim, para Raushenbush, a cidade se abre à possibilidade humana da expressão do trabalho, da religiosidade e da governança. Segundo ele, essas formas de expressão do humano são balizadas na justiça, na memória e no amor, parâmetros para a ordenação de um espaço comum onde se expressa a pluralidade e singularidade humana.

Para explicitar essa tríade, retomo as palavras do autor:

“Se, no passado, houve quem tivesse se enriquecido pela apropriação indevida dos bens públicos, manchando assim a honra da cidade por causa de sua ganância, dá-nos, nós te pedimos, a raiva justa de cidadãos, para que possamos expurgar essa vergonha e ela não venha a macular os anos futuros. Dá-nos uma visão de nossa cidade, bela como deverá ser: cidade onde impere justiça, onde um não será vítima de outro; cidade de abundância, onde o vício e a pobreza não mais existirão; cidade fraterna, onde os empreendimentos terão como fundamento o serviço ao povo e as honras serão dadas somente aos que são realmente merecedores delas; uma cidade pacífica, onde a ordem não reinará pela força, e sim pelo amor de todos pela cidade, que é a grande mãe da comunidade.”

Em estreita relação com a tríade – justiça, memória e amor – há, nesse trecho da oração, duas afirmações que nos chamam a atenção.

A primeira, quando ele pede: “dá-nos, nós te pedimos, a raiva justa de cidadãos”.

O que seria para nós hoje a raiva justa de cidadãos?

 Entendemos que a “raiva justa” que Rauschenbush busca em sua oração se traduz num forte sentimento de indignação que possa levar os cidadãos e cidadãs ao exercício de uma cidadania mais plena, por meio de uma fé cidadã e não ao conformismo ou à alienação.

 A segunda afirmação está na expressão: “dá-nos uma visão de nossa cidade, bela como deverá ser”. Aqui se reflete a dimensão da experiência cristã. Aponta para um mundo restaurado pela manifestação da Graça de Deus.

Participar ativamente do espaço público exige da Igreja – não como corpo abstrato enquanto instituição social, mas corpo vivo formado por cidadãos e cidadãs – a junção ou a articulação destes dois elementos: uma “raiva justa de cidadãos” e uma “visão” para as nossas cidades. É a necessária articulação entre a cidadania ativa e a utopia.

Para isso, é sempre necessário acreditar que dias melhores virão.

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