quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Livro "Grande Lago do Urso" de Antonio Catelani

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LIVRO “GRANDE LAGO DO URSO” – CAPÍTULO 1 COMPLETO: “LUZES EM FUGA” - PRÓLOGO

Você irá ler a partir de agora os originais de um livro que jamais chegou a ser impresso. Escrito há cerca de dez anos ele contém aspectos que exigem do leitor em determinados trechos uma boa dose de vocação para abandonar empoeiradas idéias no campo da ciência e principalmente no campo da religião. Foi escrito simplesmente como obra de ficção mas ao lê-lo até o fim você talvez acabe por pensar exatamente como quem o redigiu: “Gostaria que tudo isso fosse realmente verdade!”. Colocando paulatinamente, a partir de agora, seus originais numa rede social prestigiosa como o Facebook o autor visa apenas conceder acesso gratuito a um trabalho criterioso que pode tanto agradar quanto não. Aliás o próprio livro defende a necessidade de que as boas idéias devam ser gratuitas tanto quanto as melhores coisas da vida. Caso você seja fanático ou fanática em demasia pelas posturas fixas e pré-fabricadas que o mundo lhe ensinou até agora então é melhor que nada leia. Esse livro assim como seu ator detesta fanáticos aspergidos com as águas poluídas da ignorância e da incultura. Caso você seja enfim um livre pensador ou uma livre pensadora no sentido mais sadio e limpo que se possa atribuir à liberdade de pensamento, então leia esses originais pois é certo que irá deles gostar . (Antonio Catelani, o autor)
INÍCIO DOS ORIGINAIS:
Outubro de 1999. Fim da manhã sufocante de um dia útil qualquer. O município onde está história tem inicio localiza-se exatamente na Grande São Paulo, Brasil e seus habitantes mal e mal acabaram de acertar os relógios para entrar no horário de verão. Os olhos de Rubens Lemos pousaram tristes, cépticos, e inconformados sobre o texto do livro. Piscou uma ou duas vezes, coçou a sobrancelha direita e moveu os lábios como quem ensaiasse dizer algo. Mesmo cansado, cabeça pesando, tratou de ler outra vez. Um calafrio estranho, porém não desagradável percorreu-lhe a espinha vértebra por vértebra. Coçaria barba e bigode se os tivesse. Mas, com apenas dez anos de idade, terminou mesmo foi por esfregar com ambas as mãos o couro cabeludo, encimado pelo cabelo curto, aloirado, duro e empinado, que lhe dava certo ar de porco-espinho.
“Era uma pequenina flor com as raízes boiando em águas mansas. Expunha a alvura ao sol sem medo de um dia murchar. E em seu próprio centro, nutria uma espécie de estrela particular e amiga, toda sua e amarela por inteiro! Ela nunca se sentia só por causa das muitas coisas que lhe faziam companhia. Quais? A sombra das árvores que caminhavam ao longo do dia conforme o giro da Terra em torno de seu eixo e, de forma carinhosa, circundavam as margens do remanso onde havia nascido, seria uma delas. Também protagonizariam o cenário as flutuantes folhas largas, arredondadas, partícipes de seu corpo e o astro-rei olhando tudo lá do alto. Mas, e sempre tem um “mas”, o motivo maior de não se sentir só era a “coceguinha de Deus” fazendo das suas dentro dela”.
“Só idiotices a gente lê nesses livros...” – resmungou com desagrado – “é só a flor de uma vitória-régia ou coisa parecida, nada além disso. É lógico que mora onde nasceu. Com as plantas é isso mesmo que acontece. Elas não têm pernas para que possam sair andando." O pequeno Rubens sentiu ardência nos olhos enquanto depositava o livro fechado sobre um canto da pequena mesa do quarto.
“Coceguinha de Deus? Não dá para engolir. Não dá mesmo! Só encaro tal bobeira porque é trabalho de escola. Mas hoje estou cansado. Vai ficar para amanhã! Ademais tenho que almoçar e ir para o colégio. Ufa!”
“Pare com essa mania de falar sozinho, menino! Até parece um velho! Já fez a lição de casa hoje?” – perguntou Charlotte, entrando pelo quarto com algumas roupas já lavadas e secas debaixo do braço.
“Fiz, mãe!” – respondeu sorrindo.
“Tem certeza? Lê muito, sei disso, mas quando se trata de deveres escolares parece que sente certo enjoo. É ou não é? Valha-me Deus! Essa gaveta do seu guarda-roupa vive emperrada. Seu pai tem que dar um jeito. E vai ser amanhã mesmo! Nada de adiamentos com a desculpa de que não tem tempo! Meias, cuecas... camisas... agora está tudo no devido lugar. Não é possível! Essa gaveta também não quer fechar! Dê uma mão aqui, Rubens!"
“Deixa que eu encaixo a gaveta, mãe, já estou acostumado!”
“Tudo bem, mas não esqueça as lições, correto?”
“O que seria a coceguinha de Deus?”
“Sei lá, filho! Onde viu isso?"
“Num livro que a professora mandou ler. Retirei da biblioteca pública ontem."
“Não sei o que significa. Faz tempo que sua mãe não lê nada. Tempo? Corrijo, faz uma eternidade”
“Queria estar no lugar da senhora!”
“Ah é? Pois dou um jeito. Amanhã mesmo vai esfregar o cimentado do quintal, lavar roupas, estender no varal, tirar a poeira dos móveis, arrumar as camas que todo mundo deixa uma bagunça só, cozinhar, fazer compras, lavar a garagem, varrer a calçada, pôr o lixo lá fora! Quer mais?” Perguntou-lhe a mãe de mãos na cintura.
“Só estava brincando!”
“Pois bem, garotinho Rubens Lemos, na próxima vez que pretender brincar de que gostaria de estar em meu lugar, já sabe! Vassoura, mangueira e panos vão diretos na sua mão! Dê um giro na vizinhança agora e ache sua irmã. Traga-a para cá já. Deve estar na casa de alguma amiguinha jogando conversa fora. Quero ambos aqui almoçando juntos porque não estou a fim dessa história de tirar e pôr pratos para um e depois repetir a dose com o outro. Vai, vai. Vai, vai! Quero que almocem e saiam logo para ir à escola".
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Exatamente às 9 horas daquele dia Robert Duval embarcara num trem que deveria ter partido pelo menos quarenta minutos antes. O atraso, todavia, não o perturbava, pois, residindo apenas há 200 metros da estação ferroviária de Jurupari, interior de São Paulo, Brasil, estava mais do que acostumado a testemunhar desmazelos dessa ordem. Quem o olhasse, mesmo com rigor, jamais adivinharia há quanto tempo aquele canadense, de ar ao mesmo tempo circunspecto e jovial estava circulando sobre a face da Terra. Parecia ter em torno de 60 anos, no entanto sua documentação comprovava que nascera num longinquo 1924 às margens do Grande Lago do Urso, localizado no noroeste do Canadá numa área fria e afastada de tudo e de todos. Nos idos de 1937 ele, com treze anos, aliado aos irmãos menores, entre outras tarefas esmerava-se em pescar trutas, ainda que por vezes raras no lago, para afugentar a fome provocada pela escassez de víveres durante o rigoroso inverno. Costumavam, então, jogar linhadas com iscas, através dos buracos abertos por eles no gelo que cobria a superfície das águas. Foi assim que, certo dia, enquanto distraído erguia na ponta da linha uma reluzente truta malhada, a crosta de gelo em área frágil se quebrou e o lago tragou em segundos seu irmão mais novo Pierre. Sem titubear mergulhou, incontinenti, no buraco repleto de milhares de lascas frias, que mais pareciam placas de vidro esfacelado boiando. Buscou ansiadamente resgatar Pierre. Não sabe quanto tempo ficou se agitando na fluidez tiritante. De repente sentiu o corpo entorpecer e uma dor lancinante invadiu-lhe o peito. A partir desse instante tudo escureceu. Jamais soube quanto tempo ficou desacordado. Antes que despertasse ór inteiro ouviu Jules, seu pai, que em tempo o havia salvo das águas, chorando e dizendo com voz embargada: “Notre cher Pierre est mort! Jamais encore nous verrons Pierre!” (Nosso querido Pierre está morto! Jamais veremos Pierre de novo!). Não eram, contudo, só tristes e conturbadas as lembranças do canadense sobre sua infância. Havia outras reminiscências muito especiais e fortes, como aquelas que envolviam o surgimento, no distante horizonte noturno picotado de estrelas, de luzes coloridas e fugidias na região de McTavish e também pairando momentaneamente sobre algumas ilhotas do Grande Lago do Urso. Habitualmente moviam-se com rapidez, tal multicoloridos relâmpagos afiados e contundentes a cortar com diligência o negrume da noite. Robert, olhando o céu janela afora, com a luz amarelada do lampião às costas, se perguntava o que poderiam de verdade significar. Quando ainda bem criança estremecia muito ao ouvir os rugidos dos ursos que, por vezes, durante o verão, vagavam na escuridão. Percebeu então, que certas estridências das rodas metálicas do trem sacolejante em que viajava rumo à capital de São Paulo se assemelhavam de maneira até bastante curiosa ao timbre gutural emitidos pelos corpulentos ursos de sua infância e juventude.
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“Papa” Jules jamais se recompusera da morte do filho menor. Nem Robert e os outros membros da família Duval. O acordo tácito e complacente entre todos era o de fazer de conta que tinham esquecido. Bem difícil a empreitada, visto que o pequenino falecido soubera mais do que ninguém preencher a vida de todos com sua exuberante, buliçosa e alegre presença.
Não encontraram nunca o corpo mas, ainda assim, decidiram fincar solenemente uma simbólica cruz de madeira virgem, entalhada a canivete e com rebordos arredondados, nas proximidades da casa. As crianças não eram frequentes em tal gesto mas, volta e meia, o chefe da família podia ser visto ali, ajoelhado, mãos juntas grudadas ao peito, orando.
Os vagões do trem assemelhavam-se a fornos crematórios em movimento, devido ao calor de quase 34 graus centígrados, temperatura não tão incomum durante o verão do sudeste brasileiro. E nem ao menos as janelas escancaradas de par em par chegavam a amenizar a impositiva sensação de desconforto.
Robert Duval observou com ar de enfado os arbustos ressequidos que pareciam, estes sim, correr do lado de fora ao longo da linha enquanto o veloz comboio, só por uma fração de segundo, deu-lhe a ilusória e assustadiça impressão de estar parado. Enxugou a testa com um lenço e começou a executar com os nós dos dedos, discretamente, batidas leves no vidro da janela.
Caso quisesse, embora ninguém viesse jamais a notar o fato, não precisaria suar ou sentir calor. Julgou, todavia, eticamente correto deixar tudo como estava e manter-se conciliado às agruras climáticas que assoberbavam os demais. Decidiu andar um pouco pelo corredor do vagão semi ocupado só para se distrair. Gritos, gemidos e pungentes pedidos de socorro lhe passaram pela mente com clareza minuciosa.
Sabia do que se tratava e tinha de fazer algo antes que o pior acontecesse mas, ainda por enquanto não haveria pressa. Sorriu para si mesmo ao ter de segurar firme quando o trem fez uma curva. Inclinou-se um tanto para olhar através das janelas o céu límpido e claro, onde somente algumas poucas nuvens brancas tomavam lugar. “Il ne sera pas facile de convaincre le conducteur du train!”, “Não será fácil convencer o condutor do trem!”, pensou.
“Vamos Aninha! Vê se anda depressa! O portão da escola vai fechar!” – resmungou Rubens Lemos, olhando a irmã menor que ficara um pouco atrás na calçada. Pernas curtas, a grande mochila adicionada às costas e o fato de ser um tanto gordota faziam-na parecer quase que cimentada ao chão. Pegou-a, então, pela mão puxando seu corpo desajeitadamente e só aliviou o arrasto quando percebeu que ela poderia se desequilibrar e cair.
“Rubinho, você vai ver só! Conto tudo para a mãe! Machucou meu braço! Olha como está vermelho!” – gritou a menina com voz esganiçada. “Está bem, garotinha! Está muito bem! Vê se esquece e vamos correr juntos! Quem sabe dá tempo!”. Em pleno pátio largou a irmã defronte ao bloco A e dirigiu-se, correndo, ao bloco B, onde estudavam os alunos mais velhos. Subiu as escadas vazias em velocidade e parou ofegante diante da porta de sua classe. Estava, como já previa, fechada.
Pôde ouvir claramente a voz da professora de Geografia fazendo a chamada. O coração bateu aceleradamente, não tanto por causa do cansaço físico e sim porque, de qualquer forma, não queria perder a aula. Conhecia o gênio terrível de dona Marta, uma mestra que odiava atrasos. Até a professora chegar ao erre de Rubens, daria tempo de fazer alguma coisa? Por nada nesse mundo ela rasuraria um registro de presença depois de feitas as devidas anotações.
Daí o menino, ligeiro, entrar no banheiro, olhar seu rosto no espelho, esfregá-lo até que ficasse intensamente vermelho, colocar só o lado direito, bem amassado, da camisa para fora, tirar o tênis esquerdo do pé e acomodá-lo bem no fundo da mochila! Atravessou o corredor meio que mancando num pé só e entrou, de olhos esbugalhados, na sala de aula um segundo, se tanto, antes que ela pronunciasse seu nome.
“Presente!”
“Presente coisa nenhuma, menino! Ponha-se já daqui para fora!” - disse a mestra sentenciando: “O senhor sabe muito bem que não admito...”. “Mas... dona Marta... olha só como estou! – argumentou o jovem erguendo o pé esquerdo para evidenciar que não havia nem sombra de tênis e chacoalhando a ponta da camisa escandalosamente embandeirada fora das calças!
De imediato a mestra abriu a boca em desmedida largura, colocou a mão sobre o peito como quem pretendia conter um coração de súbito agitado, engoliu em seco e perguntou: “Meu Deus! O que aconteceu?”. Simulando ar de desconsolo e ainda pulando num pé só Rubens achegou-se mais e mais à mesa de dona Marta, depositou sobre ela sua mochila, simulou estar ofegante e com muita falta de ar. Tendo as mãos apoiadas sobre o tampo da mesa com as palmas para baixo olhou de soslaio dona Marta e decretou: “Fui assaltado!”.
Dona Marta levou a mão direita à boca muito além de espantada. “Nossa Senhora! Senta aqui Rubens e descanse um pouco! Ainda bem que está vivo!” – desabafou a mestra cedendo ao garoto sua própria cadeira.
“Êi, cara! Por que é que o ladrão não levou o outro tênis?” - indaga de repente uma voz sorridente lá do fundo da classe. “Isso mesmo! Vê se responde!” – adiciona uma voz mais também vinda das últimas carteiras.
“Vocês ai, fiquem quietos!” – exclama a professora, voltando-se em seguida para Rubens e balbuciando, com ar maternal: “Não precisa responder a nenhuma indireta, vê-se logo que passou por maus momentos... acalme-se pois isso lhe fará bem! Vá para seu lugar agora e deixe-me terminar a chamada!.... Ah! Meu Deus, alguém precisa dar um jeito nessa violência toda que há por ai! Assim não pode continuar”.
“A senhora não vai colocar falta para mim? - “Claro que não! Sérgio Cortes!” – “Presente!” – “Silvio Lombardi!” – “Presente!”.
Mal havia se acomodado e Rubens ouviu do colega da direita, na forma característica do sussuro com mãos em concha: “Cara de pau!”. E o da esquerda: “Cara de pau!”. O de trás aproximou-se bem do seu ouvido e não foi nada original: “Cara de pau!”. “Querem saber de uma coisa? Fui assaltado mesmo, está bem? Se estivessem no meu lugar, com aquela faca enorme na garganta, vocês iriam só ver!”.
“Mas por que não levaram o outro tênis?” – insistiu aquele que já havia feito idêntica pergunta no início. Rubinho deu uma olhada relâmpago para sua sacola. Esfregou o queixo com a mão esquerda e retrucou: “Simplesmente porque começou a vir gente pela calçada e eles se assustaram! Foi desse modo que sobrou um pé! Vocês são mesmo uma cambada de burros!”.
“Burros ou não, vê se vira esse pé para lá, pois aqui ninguém está a fim de aguentar o seu chulé” – respondeu um outro”. “Pshhhhhhh!” – fez dona Marta lá da frente enquanto reencetava explicações minuciosas sobre o tipo de solo que caracteriza o relevo andino. O tempo voou ágil até que soasse o toque da derradeira aula.
“Êi, Aninha! É verdade que o Rubinho foi assaltado? – indagaram justo no momento da saída de todos rumo à rua. Bastante nervoso, Rubens Lemos chegou rápido, agarrou a irmã pelo braço e a foi guiando para fora da escola disposto a sair o mais rápido possível. “Quando você não me puxa então me empurra! Pare com isso Rubens, parece que vive sempre maluco e com pressa. Por falar em maluco... cadê o seu outro par do tênis?”. “Vamos, vamos, vamos saindo Aninha que depois eu explico!”.
“Cara de pau, cara de pau, cara de pau!” – dizia em coro a fileira sorridente de alunos que se formara de ambos os lados do enorme portão que dava para a rua.
Dona Marta, nesse instante, caminhava a passos céleres rumo à sala da diretoria. Ia pedir providências com respeito à segurança em torno do prédio da escola. Parou no corredor e assistiu pela janela, admirada, a cena ruidosa que se desenvolvia junto ao portão. O conjunto de vozes uníssonas, entoando o estribilho improvisado, lhe chegou nítido aos ouvidos. Sacudiu a cabeça e sentenciou para si mesma: “Não... ele não é um mentiroso... eu conheceria um mentiroso a quilômetros de distância! Pobre menino!”.
Terça-feira, 18 de outubro de 1938. A aparição no céu de luzes em movimento, não raro agora também durante o dia, havia aumentado intensamente na região próxima ao Golfo de Amundsen. Comentários generalizados na Vila de Coppermine atribuiam a causa a alguma enigmática intensificação dos usuais fenômenos de origem atmosférica em altas latitudes.
A definição simplista ganhou, veloz, inúmeros adeptos pois nessa época do ano a pirotecnia da aurora boreal costumava realmente impressionar e fazer das suas. “Céu muito límpido, principalmente à noite, provoca tais coisas. Realmente não há nada de novo. Nenhuma mínima que fosse exorbitância. Antes, porém, ninguém havia reparado ou se dado conta!”, expressavam-se algumas testemunhas.
Na década de 30 os territórios do noroeste canadense registravam densidade demográfica extremamente baixa. Ainda agora é assim. Tanto que mesmo hoje, início do século 21, todo o Distrito Mackenzie, com seus extensos quase um milhão e quatrocentos mil quilômetros quadrados possui, se tanto, 30 mil habitantes. Região quase inóspita. Dificuldades imensas de locomoção e um frio intenso na maior parte dos meses outonais e de inverno, são qualificações que se somam para definir bem os parâmetros que mantém fixos tais dados populacionais.
As luminescências eram, então, descortinadas com clareza mas, a popularidade que ganhara a assertiva quanto à temporária insanidade climática fazia desvanecer, de pronto, a exacerbação do comentário a respeito. A não ser, é claro, que os comentários se dessem nos balcões dos bares e fossem regados a álcool. Nessas circunstâncias valia, destarte, a menção a fantasmas, espíritos e até mesmo a prováveis visitantes de longínquas paragens cósmicas. Criou-se, assim, entre a ala da população costumeiramente sóbria e ponderada um certo preconceito em torno do assunto: “Por favor, não me venham com essa conversa de bêbados!” – diziam.
Na tarde daquele dia o sargento John Murray, acompanhado de dois soldados alcançou, vindo de Fort Franklin, a cabana pertencente aos Duval. Os grandes e patudos cavalos da pequenina comitiva soltavam pelas narinas longas lufadas de vapor e não muito menos o faziam os homens encasacados de vermelho que se acomodavam, pesados, mais a carga ingente, sobre eles. Não nevara durante a noite anterior mas o ar estava intensamente frio.
A última visita de Murray à região tinha sido por volta do mês de julho, em pleno verão canadense e não era costume da Real Polícia Montada deixar passar tanto tempo assim entre as rondas à volta do Grande Lago do Urso. Com um amplo sorriso o “mounty” apeou do animal e caminhou em direção à cabana, buscando retirar durante o trajeto as grossas luvas que, então, enfiou no bolso. Observou com atenção o formato da chaminé de pedras cinzas e parou um instante para escutar com mais dedicada atenção o ruido característico do riacho de águas azuis que deslizava à direita, ali bem perto. Subiu com ansiedade, coração aos saltos, os quatro degráus que davam acesso à pequenina varanda. Esfregou e soprou vigorosamente as palmas das mãos para, em seguida, diante da porta apanhar com delicadeza a ponta do cordão de couro que atravessava estreito vão entre dois troncos e sorriu.
Puxou-o com cuidado, como se fosse utilizar sua ação em curso para acariciar os ouvidos de alguém. Vindo de dentro da casa escutou, meio abafado, o familiar badalar do pequeno sino dourado que, já sabia, ficava dependurado de um gancho preso acima da lateral da entrada. Quem abriu foi Juliette, 16 anos, não sem antes ter olhado quem seria pela fresta por onde passava o cordão da sineta. Ela era o membro mais idoso da prole de Jules Duval. Suas pupilas esverdeadas fremiram de modo quase imperceptível quando do lado de fora encarou o sargento e seus dois comandados.
“Como vai, pequenina, seu pai está em casa?” – indagou Murray em Inglês.
“Non, monsieur, il a voyagé aujourd’hui avec Robert ensemble pour faire des choses importantes ce matin. Mais je crois qu'ils reviendront vite! Voulez-vous entrer et attendre?” (Não senhor, ele viajou hoje pela manhã com Robert para fazer coisas importantes. Mas eu acredito que eles voltarão rápido! O senhor gostaria de entrar e esperar?) – respondeu a jovem que, embora falasse inglês tão bem quanto francês, preferiu ao menos naquele momento e por inexplicável razão emocional, utilizar o idioma exercitado em seu lar.
“Aceito! E peço autorização para que inclua aqueles dois soldados ali nesse seu convite! Suponho que lembre deles!”. “Ah! Carter e Olsen? Sem dúvida!”, concordou Juliette agora falando em Inglês e rindo muito. “Foram eles que vieram com o senhor na última vez, não? – emendou a menina. A um sinal do sargento os dois apearam e movimentaram pelas rédeas os seus imponentes animais que, de imediato foram presos a troncos de árvore localizados nas proximidades da varanda. Entre eles, fora as três montarias, havia ainda mais quatro cavalos que transportavam carga de víveres e uma modesta barraca de campanha.
Subitamente um choro acompanhado de espirros e tosse veio desde o fundo da residência.
“Ah! Mon Dieu! Acho que Brigitte acordou com a nossa conversa! Está tão febril! Todas as vezes que começa a esfriar ela reage assim. Se me dão licença....” – disse a jovem, retirando-se e adentrando com rapidez a um dos quartos da casa para atender a irmã.
“Se precisar temos medicamentos! Aliás vamos deixar um tanto com vocês!”, bradou Murray. “O que foi que disse?”, indagou Juliette desde o quarto.
“Disse que temos medicamentos!”, esclareceu o sargento ampliando ainda mais o som da voz. E retirou-se afobado rumo ao ar livre para aliviar os cavalos do peso dos alforges e dividi-los entre a varanda e o interior da cabana de troncos. Carter e Olsen esmeraram-se em auxiliá-lo na tarefa.
Murray, suspirando profundamente, acariciou a crina de seu cavalo dizendo: “Perdoe-me, gosto tanto dessa menina que acabei esquecendo a carga toda sobre o seu costado! Perdoe-me!” Carter e Olsen olharam-no sorrindo enquanto também tornavam as demais montarias libertas de seus pesos. Quando Juliete fechou a porta do quarto da irmã e voltou para a sala Murray tinha nas mãos uma enorme boneca. “Tome, dê à sua irmãzinha! Entregue-lhe quando ela melhorar. É um presente meu!”. Juliette apanhou a boneca com cuidado, olhou-a sorrindo e a a guardou no interior de um baú que havia a um canto da sala. Nele estavam a miniatura de uma cozinha feita em madeira, com armário, mesa, cadeiras e tudo mais, um minúsculo caleidoscópio, uma caixa de música onde um dos pares do casal de dançarinos estava faltando e uma espécie de piano metálico. “Ela vai gostar!” – salientou Juliette com um rubor intenso na face.
Jules Duval e Robert chegaram exatamente quando o sol magro e esquálido baixara a ponto de apenas caminhar por alguns graus à esquerda do horizonte, tímida e acanhadamente junto à fímbria áurea que unia todos os dias terra e céus. Entrou seguido pelo menino e cumprimentou calorosamente Murray e seus dois acompanhantes.
“Muito bom vê-los por aqui! O frio está aumentando. Juliette, sirva-lhes uma garrafa de vinho e comida, por favor”. “Vinho a gente aceita mas comida não é preciso. Alimentamo-nos em campo pouco antes de chegar. Aliás, meu bom amigo – esclareceu o policial - como sempre trouxemos provisões que vamos deixar com sua família. O mercador tem passado por aqui?”.
“Não Murray, nas duas últimas vezes em que veio não tinhamos nada para barganhar. Acho que desanimou. Pronto! Aí está Juliette com a bandeja e as taças de vinho. Sirvam-se à vontade meus amigos”.
“Quanto à barganha a que você se refere ela envolveria peles de animais?” – indagou o sargento franzindo a testa.
“ Sim, peles! – respondeu Jules meio sem jeito, pois sabia que as autoridades policiais locais estabeleciam diferença fundamental entre caçar estritamente para alimentar-se ou vestir-se com vistas a permitir que famílias inteiras pudessem enfrentar melhor os rigores do inverno e, por outro lado, caçar animais de bela pelagem através de armadilhas cruéis e traiçoeiras em troca de martelos, pregos, serrotes, álcool, talheres, facas, armas e munição além de alguns alimentos essenciais entre os quais farinha, açúcar, sal e óleo de cozinha trazidos por mascates. Murray levava víveres gratuitamente às famílias exatamente para evitar que tal prática predadora se expandisse.
“A culpa é minha Jules, a região é extensa e por vezes passa-se muito tempo até que eu esteja de volta outra vez! Precisamos mudar isso! Falarei com meu comandante para tornar essas idas e vindas mais constantes. Porém, desta feita, tive algumas razões mais sérias para não ter empreendido viagem antes. Pergunto: o mercador havia lhe deixado armadilhas em consignação para que você as usasse? É isso?”.
“Sim, mas eu não as usei e ele as levou na ultima ocasião que aqui esteve!”.
“Você se refere a Peter Orbach?” - inquiriu o sargento. “Sim” – respondeu Jules Duval.”
“Temos ordens expressas de prendê-lo – salientou Murray - caso haja flagrante quanto ao uso de armadilhas e a compra de peles! Cumprimento-o por seus escrúpulos, Duval. Tenho no entanto agora um fato triste a lhe comunicar: as mercadorias que trazemos não serão mais gratuitas!”.
Nesse momento o olhar de Murray cruzou com o olhar sereno, doce e belo de Juliette. Jules Duval ficou mudo e abaixou a cabeça. Robert fez o mesmo. A menina pronunciou com a voz trêmula e carregada de muita tristeza: “Meu Deus, senhor Murray, como vamos poder pagar? Não temos qualquer dinheiro!”.
“Pagarão com isto!” - respondeu o sargento, ao mesmo tempo em que retirava do bolso da túnica um envelope branco, meio que dobrado e amarfanhado, e o estendia a Jules. “Do que se trata?” – murmurou Duval em tom baixo, entre dentes, o olhar esgazeado e nem o mínimo sinal de sorriso na boca.
“Pare de coçar a barba, abra e leia!” – aconselhou Murray.
Visivelmente nervoso, o franco-canadense abriu o envelope sem qualquer necessidade de rasgá-lo já que não havia qualquer lacre ou colagem. Desdobrou a carta que ansiosamente retirara, fixou o papel e, aos poucos, foi arregalando os olhos.
“Qu'est-ce que ça veut dire?’ (O que isto quer dizer?) – bradou Jules.
“Tenho certeza que em parte já compreendeu. Ali está, inclusive, a razão pela qual desta vez demorei tanto para passar por aqui. Estive ansiosamente aguardando a autorização chegar do sul até Fort Franklin!” – explicou o sargento. “Vale a partir do momento em que eu assinar?” – inquiriu Jules.
“Claro! – esclareceu Murray – com a inclusão logo em seguida, é óbvio, de minha assinatura e das de Carter e Olsen como testemunhas. De hoje em diante, Jules, você é membro guardião da Real Policia Montada Canadense, com direito a uma quantia mensal suficiente para pagar as mercadorias que sempre trago e, o amigo, com a exagerada nobreza que tem, quase sempre se compraz em recusar. Como aqui nessas paragens afastadas do mundo civilizado você não tem como gastar praticamente nada, sempre haverá de sobra algum dinheiro no saldo mensal para si ou seus filhos saírem daqui quando bem quiserem.
“Realmente à volta do Grande Lago do Urso não necessitamos de dinheiro – concordou Jules Duval - e sempre que recusei ajuda material foi porque, embora dela necessitássemos, considerava que de graça e sem expelir o adequado suor de nossos rostos não seria justo aceitá-la. Esclareço que por vezes me curvei diante dos argumentos solidários e fraternais do bom amigo sim, mas isso se deu mais por causa de meus filhos do que de qualquer outra coisa. Em troca desse ganho o que deverei enfim fazer? A carta diz que cabe ao senhor fornecer os detalhes!”.
“Sua missão, Jules, será nos relatar, a cada vez que retornarmos, as agressões havidas à Natureza e à vida selvagem em torno desse local. Daqui por diante receberá do governo canadense para que ajude a preservar, ao invés de se ver instigado por mercadores nômades a ganhar algo em troca de, mesmo contra a vontade sei bem, cooperar com a destruição da fauna ou da flora. A incumbência remunerada não será só dos Duval pois outras famílias que costumamos visitar em torno do lago gradativamente também a receberão”” – esclareceu sorrindo Murray, enquanto sorvia mais uns goles de vinho.
“Essa ajuda vem em boa hora, meu amigo – respondeu Jules – pois eu já pensava em partir para Yellowknife visando arranjar algum trabalho. A partir de quando lá estivesse ganhando algo, utilizaria meus retornos ocasionais para permitir à minha família ter consigo algum dinheiro necessário a emergências. Confesso, no entanto, que tinha muito medo de deixar as crianças sozinhas”.
“Outro detalhe a respeito de sua nova missão, Jules – prosseguiu o sargento – você ou membros de sua família não têm de entrar em confronto com o que quer que seja, correto? Nunca faça algo que coloque você ou as crianças em perigo ou como alvos de qualquer ameaça. Apenas, sem atrapalhar seus afazeres costumeiros, observe tudo que puder e anote. Por razões mais do que óbvias sua especial tarefa e a das demais famílias de moradores locais não será divulgada pela Polícia Montada a quem quer que seja. Para que tudo dê certo exigimos segredo absoluto portanto. Pensou em Yellowknife por causa do ouro?”.
“Era só uma ideia, sargento. Um tanto vaga, inclusive. As minas já funcionam há quatro anos naquela área e nunca tive a coragem de sair desse fim de mundo para tentar a sorte. Pagam bem para quem estiver disposto a trabalhar, segundo li num dos jornais que o amigo certa vez me trouxe!” – esclareceu Jules.
“Muito temerário, posso lhe assegurar. A região de Yellowknife no momento está praticamente toda demarcada por aqueles que, na qualidade de investidores, ambicionam encontrar ouro. Alardeam fornecer bons salários mas o objetivo sorrateiro deles é pagar bem pouco a possiveis empregados e lucrar muito por de sobre o sacrificio alheio. Há até suspeitas de trabalho semi-escravo mas, como quem necessita do emprego não faz jamais qualquer reclamação, as autoridades policiais estão de mãos atadas sem poder agir. Já trabalhou em alguma mina? Sua saúde, segundo me consta, iria embora em três tempos!” – disse o sargento, enquanto com o rabo dos olhos observava Juliette recolhendo os copos de cima da mesa.
“Voulez-vous boire plus de vin?” (Vocês querem beber mais vinho?) - perguntou a menina sem erguer os olhos.
“Non, merci, nous sommes déjà satisfaits par aujourd'hui! C'est vrai ou pas vrai, mes amis?” (Nós estamos já satisfeitos por hoje! È verdade ou não é verdade meus amigos?) – respondeu Murray observando Carter e Olsen, bem menos para lhes pedir opinião e muito mais para lhes solicitar que parassem a ingestão de alcool.
“E as luzes, senhor Murray, o que o senhor pensa das luzes?” – perguntou o menino Robert, desentalando da garganta algo que lhe estava produzindo, faz tempo, ansiedade inusitada. “Luzes? Quais luzes?” - respondeu Murray esfregando um dos olhos e mal escondendo um sorriso. “Senhor Murray, nós vemos essas luzes de vez em quando nos céus! Vão de um lado para o outro muito rápidas. Também se mexem para cima e para baixo como se tivessem vontade própria” – insistiu o garoto acompanhando sua descrição com gestos significativos das mãos e braços.
“E depois somem sem que se saiba de onde vieram e para onde foram... não é isso?”
“Isso mesmo, senhor Murray, isso mesmo!” – quase que bradou o pequeno Robert Duval, com os olhos imensamente arregalados, muito curiosos. “Se esse fim de mundo onde nós vivemos fosse um país tropical eu diria a você que são como vagalumes!” – comentou o sargento rindo bastante e agora coçando o outro olho.
“Vagalumes? O que são vagalumes” - quis se inteirar Robert, enquanto de pé ia até o fogão para retirar da panela e colocar em seu prato um pouco do alimento que Juliette mantinha aquecido por meio do lenho que queimava por debaixo da escura chapa de ferro.
“Arrêtez d'ennuyer le sergent avec des questions idiotes, Robert! (Pare de amolar o sargento com perguntas bobas, Robert!) – interrompeu o pai. “Não se preocupe, Jules, pois não é só ele que anda curioso a respeito de tais luzes. Quanto aos vagalumes, menino Robert – explicou Murray olhando o garoto com um amplo sorriso – são, apenas para que você tenha uma idéia, uns insetos pequenos que em dia de muito calor, nas terras e paragens tropicais, apresentam partes do corpo iluminadas e piscando muito”.
“Devem ser muito bonitos esses tais vagalumes – comentou Robert – mas, quanto às luzes que vemos nos céus à noite, eu insisto, o que poderiam mesmo ser?”.

Tão logo o percebeu por perto Robert Duval dirigiu-se ao fiscal do trem pedindo-lhe licença para falar-lhe a sós. Magro, alto e de bigodes finos, o homem analisou o franco-canadense com cuidado. Após afrouxar um pouco o asfixiante nó da gravata respondeu com cortesia: “Estou à sua disposição, senhor. Em que posso ajudar?”.
“Senhor fiscal, preste bem atenção em minhas palavras...” – disse Robert encarando o homem de frente.
“Sim?” – respondeu o funcionário da ferrovia curvando-se um tanto e criando na face uma expressão cômica de tão extremamente indagadora. “Bem, senhor, o trem sofrerá um acidente, isso se ninguém tomar oficialmente alguma providência, claro!”. “Espere um instante! Que história de acidente é essa? Como sabe? – inquiriu o fiscal já encarando o franco-canadense com ar de razoável dúvida quanto à sua sanidade mental.
“Não se preocupe, não sou maluco como, aliás, está pensando nesse exato momento! Quero só uma oportunidade para falar com o maquinista do trem e assim necessito que me ajude. Faça isso em nome da salvação de todas essas pessoas, que agora só pensam em alcançar seus destinos, mas que dentro de uma hora no máximo serão vítimas fatais de um dos maiores deastres ferroviários que esse País já testemunhou” – esclareceu Duval.
“Quero que me desculpe mas tenho muito o que fazer, senhor! Estou em serviço e não passeando, entende? O senhor é estrangeiro, não é? Percebi pelo sotaque. Temos gente pirada de sobra aqui no Brasil. Não necessitamos de nenhuma ajuda vinda do Exterior. E com licença mas, conforme já falei, tenho trabalho sério me esperando nos vagões!” – e pôs-se a andar entre as fileiras de bancos apressadamente, com vistas a guardar uma boa distância entre ele e Duval.
“Garanto-lhe que será um dos primeiros a morrer... senhor Cristiano!” – disse Duval bem alto, às costas do fiscal, sobrepujando com a voz firme o ruido das rodas do trem e fazendo com que alguns passageiros próximos olhassem curiosos e estupefatos para trás. “Acaso o senhor é algum terrorista e antes de pegar o trem investigou meu nome? Pôs uma bomba num dos vagões? É por isso então que haverá um acidente?” – argumentou o fiscal muito aflito, quase gaguejando.
“Tenha calma, meu bom amigo. Sentemo-nos em algum banco com espaço livre neste vagão e conversemos um pouco, aceita? Naquele canto, por exemplo...” – olhou o relógio e sentenciou, sorrindo: “ainda temos longo prazo pela frente. Seu “urgente” serviço como fiscal pode esperar, é ou não é?”. Cristiano aquiesceu com a cabeça buscando o setor do vagão indicado pelo franco-canadense.
Sentados sobre o mesmo banco mas posicionados quase que de frente, Duval apoiou sua mão direita sobre o ombro esquerdo de Cristiano. Fez um gesto sobre os olhos do fiscal com a palma da mão esquerda e começou a falar: “Quero que tenha calma, a mais absoluta calma. Escute-me atentamente... agora irá saber que conheço minúcias que outras pessoas não podem captar... não o faço por mal... sabe? Minha ação é ponderada e benéfica... lembra quando tinha apenas 15 anos e teve uma discussão feia com seu pai? Não fale... apenas responda sim ou não com a cabeça! Certo! Assim mesmo... só com a cabeça! Vejo então, por meio do seu gesto, que lembra do fato... correto? Nesse trem, além de você e eu alguém mais sabia sobre esse episódio em sua vida? Isso, não fale, responda só movimentando a cabeça! Está indo muito bem, meu bom amigo Cristiano! Você naquela época havia pedido a seu pai autorização para fazer testes num time de futebol e ele recusou. Certo?”.
Nesse exato momento o fiscal tartamudeou: “Não pode ser! O senhor é um bruxo...”. Acalme-se, conforme já pedi, Cristiano, responda apenas com movimentos de cabeça. Há um pouco mais a dizer para convencê-lo completamente de que pode confiar em mim. Ouça: você diante da irredutibilidade de seu pai arrumou alguns pertences e saiu de casa irritado ao extremo para morar com uma tia chamada Úrsula, irmã de sua mãe. Ficou lá por 23 dias mas voltou para casa tão logo soube, por intermédio mesmo de sua tia, que Alice, sua mãe, não parava de chorar. Agora já podemos falar com o maquinista? Sei que vai concordar! Abra os olhos! Isso mesmo! Você não esteve adormecido nem sequer por um momento. Na verdade só relaxou! Agora, já de olhos abertos posso lhe afirmar que não quero forçar você a nada. Seu pai estava certo. Ao menos em parte e por força, é claro, da sua pouca idade. O futebol do menino Cristiano era muito bom e iria se desenvolver ainda mais mas a inveja alheia, por outro lado, insistiria em podar sua carreira. Está nesse emprego há sete anos, tem 36 anos, é casado e pai de três filhos e sei que um alarme falso poderia prejudicá-lo muito. Garanto, meu bom amigo Cristiano, que você não será demitido nem irá receber qualquer advertência!”.
“Perdoe-me por tê-lo chamado de bruxo! Como adquiriu tais poderes?” - indagou com um sorriso nos lábios o fiscal, sentindo-se profundamente calmo e ao mesmo tempo bastante alerta. “Não é uma questão de poderes! Tudo aquilo que lhe disse tem uma explicação simples: para saber o que aconteceu com o senhor em qualquer instante de sua vida... deixei de ser eu mesmo por instantes simplesmente para ser... você. Pus de lado minha individualidade e entrei no amálgama do Todo, buscando exatamente o nicho onde você está!”.
“Deixou de ser o senhor para ser eu? Não entendi! - comentou sorrindo o fiscal – em todo caso essa sua frase me lembra outra!”. “Sim, eu sei qual, respondeu Duval: Mateus 22:39 ou Marcos 12:31, Amarás a teu próximo como a ti mesmo! Contudo tal ato, o do amor, que lhes foi recomendado, não é e nem poderia ser jamais uma obrigação fria e esquematizada surgida em decorrência de quaisquer temores diante de uma ordem divina. Aquele que pronunciou tais frases pretendia não o que se obtêm costumeiramente quando dito e ordenado por uma autoridade expressiva e sim queria de coração que houvesse em tais parâmetros o impulso de genuína vocação pessoal. Ou o amor por acaso surgiria na alma de alguém em seguida a algum passe de mágica? Simplesmente porque alguém lhe diz: AME! ESTOU LHE ORDENANDO!? O ato de amar nunca jamais foi fruto da obediência a algum pedido ou a alguma peremptória ordem. Ninguém ama a quem quer que seja ou a coisa alguma apenas porque recebeu vozes de comando para tanto. Aquele sentimento de atração condicionado à idade do acasalamento sim parece decorrer de impulsos meramente hormonais e de instintos atávicos mas os outros amores não. Pelo contrário, Cristiano, necessitam burilamento, trabalho meticuloso enfim. Porém ouça o que tenho a dizer, daqui a precisamente 86 quilômetros, o trem terá de atravessar uma ponte. Antes porém o trem percorrerá área de grande precipitação pluvial. A chuva será tão forte que, caso prossigamos viajando com o trem, teremos dificuldade em ver através das janelas o que ocorre no exterior. A ponte ruirá porque em seus pilares há bastante tempo ninguém realiza qualquer revisão. Juntando-se a força inusitada da correnteza, mais a fragilidade atual dos pilares e por fim o enorme peso do comboio de vagões teremos como resultado uma catástrofe de grandes proporções!”.
“Não posso - falou Cristiano - levá-lo diretamente ao maquinista. É proibido interrompê-lo sem uma boa razão e a entrada de pessoas estranhas em sua cabine é expressamente vetada. Necessito que me ajude, então, pois só posso lá ingressar desde que sozinho. Diga-me, senhor, algo que possa convencê-lo tal como há pouco fez comigo!”.
“Está certo, meu bom amigo Cristiano! – disse Robert Duval sorrindo – mencione a ele, sem modificar uma só palavra, o seguinte: “Com ou sem travesseiro na janela!”.
“Mas, senhor, que frase mais doida é essa?”. “Não se preocupe, repita a Cesário, o maquinista, esse conjunto de palavras do modo como lhe falei!”. “Que maravilha, o senhor sabe até mesmo o nome dele!” – exclamou Cristiano. “Ele entenderá o significado da frase, pedirá a um substituto que cuide dos controles do trem e você, assim, o trará para conversar comigo. Não perca tempo, Cristiano, vá! Estarei aqui esperando!” – determinou o franco-canadense com uma inflexão forte e firme na voz.
Em no máximo dois minutos Cristiano retornou acompanhado do maquinista, um homem semi-calvo de cerca de 40 anos, estatura média, levemente estrábico e que passava a mão pela boca o tempo todo. Ambos ficaram a olhar o canadense pasmos, enquanto ele reexplicava tudo, agora ampliando ainda mais os detalhes.
O maquinista, mediante o que considerava irrefutáveis provas quanto às qualidades extra-sensoriais de Duval, decidiu, na próxima parada, alegar ao chefe da estação não poder prosseguir viagem em virtude de um possível defeito “mecânico” ou “elétrico” que envidaria todos os esforços para resolver. Não fosse essa a decisão do maquinista e o canadense, prevendo a ocorrência do desastre e com vistas a impedí-lo, teria a exaustiva tarefa de dar provas cabais perante todas as autoridades da companhia férrea no que dissesse respeito às suas qualidades divinatórias. O trem, porém, enquanto Duval estivesse tolamente perdendo qualquer fração de tempo na tentativa de convencê-los sobre um desastre “ainda por acontecer”, prosseguiria viagem e não haveria tempo hábil, então, para evitar a queda fatal pelo vão da ponte que ainda ruiria.
“Essa locomotiva foi instalada na semana passada, estava tinindo de tão boa, como foi apresentar defeito?” - vociferou o chefe da estação, fazendo-se notar em seu desabafo pela multidão de passageiros que abandonava os vagões furiosa. “Cesário, pelo amor de Deus, você pediu para que todos deixassem os vagões portando suas bagagens e se acomodassem na plataforma? Você é um consumado idiota! Um desastre completo como ser humano! Chame-os de volta – ordenou o chefe da estação - e tente consertar o problema. O próximo trem chega em uma hora e não vai caber todo mundo!”.
Nesse exato momento o céu carregado de nuvens escuras se abriu e um aguaceiro forte começou a cair. A tempestade, que ao menos de inicio tombou célere também em forma de pequeninas pedras de gelo, reboou ensurdecedoramente sobre as telhas metálicas da velha estação ferroviária por bom tempo. Só bem mais tarde foi que se transformou apenas num intenso bombardeio de grossas gotas de água. O maquinista, fingindo não ter ouvido as determinações do chefe da estação para que pedisse o retorno dos passageiros a seus lugares nos vagões, juntamente com Cristiano e Duval entrou na composição. Cesário, criteriosamente, cumpriria seu papel de deixar o tempo passar enquanto Duval e Cristiano ocupavam um banco vazio de vagão.
“Senhor, qual é mesmo o seu nome? – indagou Cristiano tentando falar alto para superar o barulho do temporal. “Duval, Robert Duval!”. “Assim de passagem e sem que eu queira ser intrometido em demasia, poderia o senhor eliminar uma curiosidade que tenho aqui dentro da cabeça?”.
“A história do travesseiro na janela que eu pedi para você, mencionar ao maquinista?”. “Isso mesmo senhor... senhor... Duval – concordou o fiscal – mas há também outra coisa!”. “Eu sei bem a que se refere, meu bom amigo, é sobre o teste no clube. Quanto ao maquinista lamento profundamente nada poder falar. Pergunte a ele, caso queira dizer algo a respeito a você ele então o fará. Acho até que não será difícil obter a informação. Eu contudo não poderei entrar em detalhes. Vamos até as proximidades do escritório da Estação pois o telefone está prestes a tocar e eu quero estar por perto quando o chefe for atendê-lo. É bom que você também esteja lá”.
“Senhor Duval, por favor seja compreensivo e não fuja do assunto, insisto de verdade em saber sobre o teste no clube de futebol. Acaso daria certo não fossem os obstáculos que se prenunciavam?” – “Quer mesmo saber? Creio que ficará imensamente triste com minha resposta. Lembra que lhe falei sobre o esforço de gente invejosa para alijá-lo da iniciante carreira? Você teria de realizar um esforço acima das possibilidades de um garoto tal e qual você era para sobrepujar os impedimentos que se apresentariam! Seu pai de forma alguma pretendia apoiá-lo e o apoio dele seria crucial para que você a tudo enfrentasse com coragem extrema! Sua mãe não contestava nenhuma decisão de seu pai e... enfim... tornou-se impossível você continuar!”.
“Essa noticia desagradável o senhor já havia me dado, senhor Duval, contou-me sobre a inveja alheia e sobre o desânimo que a falta de apoio de meu pai significariam para mim. Havia algo mais que eu devesse saber?”
“Quer mesmo que eu conte? Creio que ficará ainda mais triste quando souber!”. “Diga-me, senhor, faço questão absoluta de ficar inteirado!”. “Pois bem, abra seus ouvidos então e ouça, ainda hoje, com 36 anos o senhor seria um dos melhores e mais famosos jogadores que o Brasil já teve! Disse com todas as letras anteriormente que seu pai estava certo em impedí-lo por que a inveja alheia iria podar sua carreira e você teria de voltar para casa de cabeça baixa. Mas, se você pudesse arrostar tudo e tivesse estrutura para não desistir. Caso a sua coragem fosse indômita ao extremo durante anos a fio, então sua vitória seria gloriosa. Não gosto, Cristiano, de dar esse tipo de notícia, promissora em demasia por um lado mas pesarosa ao máximo pelo outro, a quem quer que seja porque pode nos doer mais a vitória perdida no passado, vitória essa que nem chegamos a conhecer do que a derrota dos dias presentes, atuais, que conhecemos muito bem!”.
“Tem razão, senhor Duval, muito obrigado de coração. Realmente estou triste por não ter sido famoso mas minhas crianças me amam e minha esposa também. São toda a torcida que eu gostaria de ter!”. “Fiquei feliz de vê-lo entender tais coisas! Isso tem um belíssimo nome, meu amigo: evolução!” – comentou Duval sorrindo.
Mas 15 minutos de chuva forte e constante e, de repente, o telefone tilintou. A funcionária ergueu-se da mesa que podia facilmente ser vista ali mesmo a partir do tablado da estação e veio até a janela chamar seu superior. Em pé, telefone colado ao ouvido, com uma das mãos posta sobre o tampo da escrivaninha onde todos os dias trabalhava, seu rosto pouco a pouco foi adquirindo lividez e os olhos arregalaram-se emoldurados por um ar de espanto e intensa preocupação.
Saiu do escritório e veio a passos largos ao encontro de Cristiano e Duval. Abriu desmesuradamente os braços e a boca informando a plenos pulmões: “Meu Deus! Vocês não vão acreditar, uma das pontes fluviais ruiu e os trilhos foram parar no leito fundo do rio. Não fosse esse bendito defeito na locomotiva e todos vocês poderiam estar mortos. Essa ponte fica longe de tudo e de todos e só agora pouco foi que alguém que mora próximo ao local comunicou às autoridades. Pelo horário que o seu trem teria de cumprir, Cristiano, vocês todos deveriam agora estar mortos em virtude do acidente. Vamos avisar Cesário, aquele desmiolado, sobre esse fato. Zonzo do jeito que é só faria algo certo por mero acaso! Sabem porque ele consegue dirigir um trem? Por causa dos trilhos! – e saiu com pressa rumo à porta de entrada da locomotiva.
“Deixe-o ir cumprir seu papel Cristiano, tenho que me despedir de você e agradecer por ter me dado ouvidos. E não me diga por favor que eu já sabia que você me daria ouvidos. Há momentos em que a melhor coisa do mundo se chama normalidade! Tenho que ir à estação rodoviária mais próxima pegar um ônibus para São Paulo! Pssssst, não diga nada, eu sei onde fica!” – esclareceu Duval abrindo um sorriso.
“O senhor é um herói!”. “Não, não sou mas tive prazer em poder ajudar” - falou o franco-canadense enquanto estendia a mão a Cristiano. Fez meia volta e carregando nos braços sua pequena maleta marrom, dirigiu-se a passos largos e firmes rumo à roleta de saída da estação ferroviária. Os demais passageiros do trem permaneceram sem se mover sobre a plataforma. Haviam pago pelas passagens e a estrada de ferro teria, na opinião da maioria, que dar um jeito na situação. No mínimo reembolsá-los ou então baldeá-los para outra composição. Qualquer desvio para um ramal mais longo até chegarem a São Paulo também implicaria em muito mais reclamações. Duval sorriu e movimentou a cabeça de um lado para o outro enquanto dizia para si mesmo compassadamente: “C’est... la... vie! C’est... la... vie!” (É a vida! É a vida!).
No palco de fundo do seu pensamento distinguia com limpidez o maquinista, passando pela calçada de uma rua qualquer pertencente ao lugarejo onde ora Duval estava célere e ereto em busca de um ônibus para São Paulo. Sua visão interior, nítida, percebia atentamente Cesário olhando a janela aberta toda pintada de verde de uma casa simples localizada num dos cantos da minúscula malha urbana. Subitamente uma mulher, muito bonita por sinal, portando brincos grandes e dourados, tipo argola, surge na abertura e com os olhos temerosos, bem sérios e carregados de ostensiva timidez, coloca um travesseiro sobre o batente.
Pé ante pé e observando em todas as direções, visivelmente para não ser notado, Cesário passa os dedos sobre a calva e se esgueira até o pequeno portão azul de madeira, abaixando-se e entrando rapidamente. Dali a dois minutos, se tanto, a formosa senhora dos brincos de argola retirava sofregamente o travesseiro do batente e trancava a janela.
Em cima de uma cômoda da sala, bem por detrás do casal que ali mesmo sobre o sofá se acariciava e se beijava com avidez e sofreguidão havia, ao lado de pequeno vaso sem flores, um porta retrato simples, desses com moldura acrílica. Nele, colorida, podia-se perceber uma daquelas tradicionais fotos de casamento. Ela, sorridente, com o vestido de noiva e o tradicional buquê de flores nas mãos. Ele abraçando-a e quase colando seu rosto ao dela.
Era o colérico, apoplético e esbravejante chefe da estação ferroviária local. A chuva voltou a cair mais forte após uma pequena trégua. A estação ferroviária apareceu à frente de Robert Duval tão logo ele virou à direita de uma esquina. Sem demora buscou o setor dos guichês e comprou sua passagem. Havia que descansar um pouco. Ao menos um pouco.
“Chííííííí... que cara é essa meu Deus do céu.... está chegando nervoso outra vez?” – indagou Charlotte, enquanto abria a porta da sala para deixar entrar um marido apressado, gesticulante, fulminando tudo à sua volta com olhos carregados de mal estar. “Passe um dia sequer naquela repartição pública e depois eu quero conferir se você terá ânimo... quero só ver! Ruy Barbosa tinha razão! E como tinha razão! Aliás, vá ter razão assim lá bem longe!” – comentou Astrogildo enquanto partia célere para a cozinha onde bebeu, quase sem tomar fôlego, três copos bem grandes de água do filtro.
“Antes que comece a repetir a frase do Ruy: “De tanto ver triunfar as nulidades...”, acho melhor que tome um banho, de preferência com o chuveiro desligado, para esfriar essa fúria anti-burocrática e venha jantar com um sorriso nos lábios. Chega de paranóia!”.
“A Aninha e o Rubens, onde estão?” – quis saber o marido. “O Rubinho está lá em cima no quarto fuçando no computador e a Aninha, como de costume, foi até os vizinhos aqui ao lado convidada pela filha deles. Acho que desta vez para assistir a um vídeo infantil. Imagino que jantará lá se é que já não estão todos jantando. Afinal são quase 18 horas. Não gosto de nossa filha ficar dando despesa para os outros, ficar comendo na casa dos outros mas na vida é assim mesmo! De vez em quando a menina da vizinha também faz refeição aqui, não faz? Então, fica tudo elas por elas!”.
“Disse bem, garota!” concordou o marido. “Vá logo tomar banho seu “chato” – insistiu ela - pois estou preparando agora mesmo um omelete delicioso! Tenho certeza que você e o Rubens vão adorar! Pegue uma toalha de banho no quarto. A outra eu coloquei lá fora para lavar logo amanhã cedo. Hei! Está me ouvindo? Já subiu as escadas? ES-CU-TE! Tem uma gaveta no quarto para você consertar depois... ouviu?”.
Murray levou apenas uma fração de segundo para dar ao menino Robert uma resposta plausível, paliativa, elaborada apenas para afugentar a total falta de informações: “Quem sabe as luzes se devam a qualquer mudança com relação à forma como antes se apresentava a Aurora Boreal, podem ser também motivadas por meteoritos minúsculos riscando de quando em vez a atmosfera. Na verdade não sei lhe dizer! De vez em quando nós as avistamos à noite em viagens a cavalo como essa. Mas há quem as tenha observado até mesmo de dia. Um esquimó bem idoso estava argumentando há algumas semanas em Fort Franklin, misturando inglês com aquele terrível linguajar “inuktitut”, que tais luzes seriam forças espirituais de grande poder que precisavam e mereciam ser muito respeitadas. Sei lá!”.
“Sim, sim, senhor Murray! O esquimó pode ter razão sim!” – falou alegre e entusiasmado o menino. “Para falar a verdade – prosseguiu o sargento – considero os esquimós um povo bastante intuitivo. Porém, como homem civilizado não concordo com o hábito de que se veja em todas as coisas ainda não esclarecidas um fenômeno espiritual! O surgimento das luzes que se movem em conjunto ou cada uma por si deve ter explicação bem mais racional, prática e aceitável. Só não sei dizer qual!”.
“Gostaria de ver essas luzes de perto! Uma noite dessas eu e Juliette vamos perambular pelas redondezas, ainda que esteja muito frio, apenas para descobrir o que são!” – disse brincando o irmão, mais para extrair repentinamente Juliette de seu cauteloso mutismo.
“Par Dieu, jamais! Je ne veux pas devenir un pilier de glace! (Por Deus, jamais! Eu não quero me transformar numa pilha de gelo)” - exclamou a irmã, quase engasgando num copo de água que ingeria.
“Perdoe as crianças, senhor Murray – solicitou Jules – vou pô-las para dormir. Mais uma vez temos prazer em que o senhor e seus soldados pernoitem conosco! Ficarão distribuídos entre meu quarto e o das crianças. Os Duval, conforme sabe, não se incomodam em dormir todos na sala”.
“De modo algum, Jules! Como das outras vezes ficaremos aqui e vocês repousarão em seus lugares certos. Já lhe disse antes um milhão de vezes para parar de repetir tais gentilezas conosco. Somos soldados e ocupar camas de campanha no chão de sua sala é, para nós, infinitamente mais confortável que estar no interior de uma barraca ao ar livre! – esclareceu Murray, estalando os dedos na direção de Olsen e Carter para que fossem buscar na varanda o material necessário ao que pretendia.
Após o café da manhã seguinte Murray, Olsen e Carter decidiram de comum acordo partir. Como era de hábito em tais ocasiões a família Duval estava toda postada em pé do lado de fora da casa, no exato momento em que os “casacos vermelhos”, após o necessário apoio de uma das botas no estribo escolhido, alçavam seus corpos em giro acrobático acima das ancas dos animais, visando a mais exata e conveniente acomodação sobre as celas.
As patas dos cavalos, como sempre ocorria em idênticas ocasiões, tamborilaram e casquearam sobre a grama onde havia algumas quase imperceptíveis lascas de gelo descarregadas pelo frio da noite. Tratava-se do “sapateado” ritualesco habitual que, para os equinos que serviam de montaria aos soldados, representava uma forma de acomodar animais e cavaleiros tal e qual se fossem uma só coisa.
Murray olhou Juliette e escancarou o melhor dentre os sorrisos que tinha ao mesmo tempo que ameigava, amansava e suavizava o olhar ao ponto de torná-lo o mais doce que podia. Distanciar-se outra vez daquela gente doía-lhe na alma até bem mais do que o “quantum” em que havia sua alma se sentido feliz ao extremo por ter se reaproximado tantas e tantas vezes deles.
Do alto de seu cavalo cujas narinas exalavam um tênue vapor Murray fez sinal a Jules para que aproximasse um tanto: “Meu amigo, alguém já apareceu por aqui identificando-se como Gilles Lavalle?”. “Não!” – respondeu Jules esfregando ambas as mãos.
“Lembra-se – sussurrou o sargento - do que lhe disse a respeito de tomar cuidado e jamais...”
“...bancar o herói? Lembro sim!” – respondeu Jules.
“Pois bem... o conselho dado é muito mais importante no caso de sua família cruzar com Lavalle. Evite assustar as crianças mas Orbach, em comparação a tal homem, é puro bebê de colo adormecido!”.
“O que faz ele?!” ´indagou, receoso, Jules.
“Caça animais de pele vistosa. Utiliza em profusão aquelas armadilhas dentadas com mola forte que dilaceram apenas as pernas dos animais mas deixam intacto o restante. Caso, de em meio à floresta, cheguem até seus ouvidos gritos, berros, guinchos ou uivos desesperados de algum animal lhe parecendo sob o talante de terrível angústia mortal, como que preso numa armadilha que o dilacera sem qualquer dó ou piedade, isso poderá ser indício de que Lavalle está por perto. Evite tentar socorrer o animal porque é mais que certo que Lavalle estará de tocaia com seu rifle à mão e não hesitará em matar quem quer que seja que lhe sirva de obstáculo!”.
“Acha que esse sujeito poderia me oferecer acordos semelhantes àqueles que me propunha Orbach?!”.
“Tenho minhas dúvidas mas nunca se sabe. Costuma agir solitário. Quando esteve em Fort Franklin, que além de posto militar é também local de abastecimento e muda de montarias para muitos viandantes, apenas arranjou confusão e brigas. Tem o dobro de seu tamanho e afirma-se que, mesmo embriagado, possui força descomunal. Não fosse a interferência de um batalhão de soldados e teria surrado até a morte três homens corpulentos que riram de seu chapéu!”.
“Do chapéu?!” – “Sim, Jules!!!” – “E por que?” – “É feito com a parte detrás de uma cabeça de urso!” – disse Murray, olhando sorridente para todos e fazendo um gesto amistoso com a mão direita, antes de dar meia volta à montaria e partir seguido por Carter e Olsen. Seu último direcionar de olhos foi para Juliette. Quando o pequeno Robert de soslaio observou a irmã, percebeu-a sorrindo enigmaticamente. Mechas dos cabelos ruivos da menina derramavam-se estudadamente em franjas testa abaixo, escapulindo à beira do gorro vermelho que ela mantinha sobre a cabeça.
No dia a dia Juliette era por vezes melancólica, retraida, ensimesmada. Em outras ocasiões exibia um senso de humor flagrante, inquestionável que contagiava a todos. Olhando-a mais atentamente Robert, naquele exato momento, concluiu que, apesar do quase mutismo que a jovem demonstrara nas últimas horas, ela estava interiormente feliz.
“Vamos todos cumprir nossas tarefas! – instou o pai - As visitas se retiraram e temos muito o que fazer! Pare de matutar a respeito de um mundaréu de coisas Robert e ponha-se a alimentar nossos animais, pare de sonhar com isso ou aquilo Juliette e vá ver se a Brigitte melhorou do resfriado!”.
“O sargento – respondeu a menina - deixou-nos vários medicamentos e a Brigitte já tomou aquilo de que precisava. Olhe pai, ela acordou e já se levantou! Está melhor querida?”
“Estou, Ju! O senhor “Mullay” deixou alguma coisa para mim como das outras vezes?”
“Venha cá para dentro que eu vou lhe mostrar!”
“Como foi seu dia hoje, Rubinho?” – indaga Astrogildo durante o jantar. “Tudo bem, pai!”. “E por que essa cara de quem está chateado, então?”. “Não é nada não! Está tudo ótimo... pai!”. “Você ouviu, Charlotte? Depois ainda aparece gente na televisão afirmando que os pais tem que ter diálogo com os filhos. Mas, e quando são os filhos que não querem conversar com os pais?”.
“É que ele foi assaltado bem na calçada da escola. Por causa disso está assim quietão, completamente murcho. Oh! Meu Deus! E essa menina que não chega da casa do vizinho! Rubinho ficou muito assustado com essa história do assalto, não é meu filho?”. “É sim mãe! Não foi brincadeira não!”. “Tudo isso é verdade mesmo, Rubens? Levaram alguma coisa? Bateram em você?” interroga Astrogildo. “Não, pai. Não levaram nada e não bateram em mim. Quando estavam me assaltando apareceu gente vindo pela calçada e eles se apavoraram. Saíram correndo a toda velocidade. Quase perdi a primeira aula. A profes....”
“Espere ai só um instante... estavam armados?” - interrompeu o pai. “Estavam sim, armados com facas!” – respondeu Rubens. “Garoto, você teve sorte, ainda bem. Fico agradecido a Deus por isso. Sua irmã, onde se encontrava nessa hora?”. “Tinha acabado de entrar pelo portão, questão de um segundo apenas na minha frente, eu havia baixado para arrumar a meia ali mesmo na calçada quando eles apareceram de repente e me agarraram pelos braços, foi horrível!”.
“Daqui para frente, senhor Rubens, nada de atrasos mais, entendeu?”.

FIM DO PRIMEIRO CAPÍTULO, INTITULADO “LUZES EM FUGA”
PROSSEGUE NO CAPÍTULO 2, INTITULADO "PEGADAS NA NEVE"

Fonte:https://www.facebook.com/greatbearlake?fref=ts, acessado em 01/01/2014.

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