deixo-vos
um corpo aberto esventrado
sangrando desejo pelos flancos
uns olhos baços de tanto acender as noites
na invenção de luas nadas mortas
uns braços caídos leves inúteis
de nada alguma vez terem presos
deixo-vos
o vento e as nuvens
e um rio a desaguar no deserto
uma paragem de autocarro
sem placa nem passageiros nem carreira
uma ponte sobre o infinito
envolta em mistério e desespero
deixo-vos
um pescador a escutar o mar
remendando as redes de um passado inútil
um grito coado pelo vento
a morrer nas muralhas de um cais invisitado
e porque inventaram lágrimas e sofrimento
deixo-vos
o rosto salgado
os lábios ressequidos de sede
os dedos gretados de tantas carícias amargas
o ventre rotundo de fome e azia
as pernas com quatro velocidades – cadeira de rodas
deixo-vos
uma recordação que se apagará no tempo
como as pegadas no vento que a areia acaricia
(in “cadernos de literatura”, centro de literatura portuguesa da universidade de coimbra, número 22 -1985 - instituto nacional de investigação científica)
.......
qualquer sítio é bom para escrever.
(coimbra; praça do comércio; 2008)
https://ahcravo.com/2020/02/20/memoria_22022011/
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