O sorriso da cachorra - últimos capítulos -
Olinda e Vila de Nazaré
Os dois resolveram passar o
carnaval em Olinda. Quando chegaram, na quinta-feira, a cidade já estava em
festa! Pessoas bonitas passavam com mochilas, sacos de dormir, e a alegria nos
rostos era evidente. Eles ficaram em uma casa próxima aos “quatro cantos”,
local tradicional de encontro dos blocos carnavalescos, numa rua situada no
final de várias ladeiras, com vários pequenos botecos. Arrumaram as coisas e
foram de imediato para a rua. Chegaram aos “quatro cantos” e, no balcão de um
boteco, pediram duas cachaças. Patrícia gostava de tomar bem devagar, como se
saboreasse um licor, em pequenos goles. Os dois vestiam fantasia de palhaço,
bermuda verde com bolinhas brancas, com suspensório, tocas de palhaços carecas
e os rostos pintados com batom vermelho e minâncura branca circundando a boca e
as sobrancelhas. Caminharam pela cidade, ladeira da Ribeira, Igreja Sé, pátio
da prefeitura, onde ficavam as emissoras de TV, transmitindo ao vivo.
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Era impressionante a diversidade daquele carnaval. Era
praticamente impossível encontrar duas fantasias iguais: palhaços, colombinas,
pierrôs, Mateus e Catirina, índios, caboclinhos e nenhuma igual; enfermeiras,
policiais e sem falar nas inventadas. Os bonecos gigantes de Olinda eram
espetáculo à parte; enormes, com seus braços balançando de um lado para o
outro, com orquestras acompanhando, e aquela multidão a cantar as belas canções
de carnaval.
Guerreiros de lança caminhavam, aos pares ou sós, para o
ponto de encontro dos maracatus de baque solto, que representavam com orgulho
seus terreiros de candomblé, em desfiles pelas ladeiras de Olinda. O colorido
de suas jubas, os chocalhos batendo, não havia uma só pessoa que não parasse
para admirá-los. As casas que tinham som ligado nas portas desligavam em
respeito à passagem dos maracatus e também dos blocos. A cada encontro de
blocos, André e Patrícia mudavam e passavam a acompanhar o seguinte. André
carregava um cantil com vodca e refrigerante de laranja. Quando acabava,
voltavam a casa para reabastecer.
À noite, Patrícia tinha
bebido um pouco mais e foi dormir. André ficou na porta da casa brincando e
vendo as pessoas passarem. De repente uma “loura” pulou em seu pescoço e lhe
beijou a boca, arrastando-o pelo braço para os “quatro cantos”. Foi quando ela
então colocou a mão dele em seu sexo e tentou beijá-lo novamente. Ele não
entendeu, mas recusou e voltou para casa, pensando por que fez aquilo, se ela
era linda! Olhos azuis, pela branca, cabelos na altura dos ombros, cacheados, e
vestia uma fantasia de diabinha. Quando André saiu, ela deu de ombros, virou o
rostinho para o lado, sorriu e mandou um beijo para ele, sumindo em seguida
pela ladeira. Chegou a casa e Patrícia estava dormindo. Deitou-se ao lado dela
e a abraçou. Ela retribuiu e se beijaram, se cariciaram e inevitavelmente
fizeram amor.
Quando o carnaval terminou, resolveram passar uns dias na
casa de seu irmão, que agora morava na Vila de Nazaré, município do Cabo de
Santo Agostinho, interior de Pernambuco. Ângelo morava em seu atelier, que era
uma casa antiga com várias janelas de madeira. A fachada era amarela com
detalhes em branco e as janelas azuis, em frente a casa havia uma mata.
Embrenhando-se por ela, dava-se numa antiga casa de farinha, que tinha sido
transformada em um restaurante.
Foto: Daniel Barros* |
Quando chegaram, após
arrumar as coisas, foram para a casa de farinha almoçar. Pediram peixe e,
enquanto era preparado, bebiam cerveja, cachaça, e tomavam caldinho de feijão.
O peixe estava muito saboroso. Seguiram então, após a casa de farinha, para
outro lugar. Descendo havia uma trilha que dava no mar: era uma visão
magnífica! A praia era formada por rochas e sobre elas as ruínas de um velho
forte chamado pelos moradores da região de “Castelo do Mar”. Fora ali que o
navegador Vicente Pinzón descobrira o Brasil em 1498, batizado por ele de Santa
Maria de La Consolacion.
À noite, foram para a praia de Suape. Sentaram para
beber, fumar charuto e conversar. Era lua nova e a noite estava ainda mais
escura. O irmão de André e a esposa resolveram voltar mais cedo. André e
Patrícia ficaram, queriam apreciar um pouco mais o local e fazer uma caminhada
pela praia. Caminharam um pouco e sentaram na areia para ouvir o mar. Ela
estava de minissaia e camiseta; ele só de bermuda. A praia estava deserta. Ao
longe, apenas as luzes dos botecos rústicos de madeira. Deitaram para
contemplar as estrelas, pois a escuridão as tornava mais radiantes. André
abraçou Patrícia, acariciou seus seios e baixou sua calcinha. Ela estava
excitada e seus corpos se entrelaçaram.
— Eu te amo! – disse André.
— Nunca vai me deixar? Promete que nunca vai me deixar.
— Prometo.
— Parece que meu corpo está em brasas.
— Adoro sua boca, seu beijo, seus lábios em minha boca.
— Que delícia sentir você dentro de mim, encher-me com
seu gozo quente.
O suor escorria pelo corpo de André, passando para o de
Patrícia. O calor de seus corpos parecia iluminar a noite, transformandos-os em
um só. A terra parecia se mexer embaixo deles; as estrelas corriam no céu, como
se todas caíssem na Terra, ao mesmo tempo. A noite calma, de repente se agita,
e o vento, antes suave, agora soprava areia sobre seus corpos, como se quisesse
apagar o incêndio que ali se iniciava.
— Você sentiu? – disse ela.
— O quê?
— A terra? Parece que estava se mexendo, como você fez
isto?
— Não acredito que você também sentiu.
— Nunca tinha acontecido isto, desta forma, como se só
existisse um corpo.
— Como se nós tivéssemos nos transformado em uma só
pessoa.
— Foi o que senti também.
— A areia parece que nos envolveu num casulo.
— E agora nascemos um só, como se algo nos ligasse como
gêmeos siameses.
— Vamos entrar no mar?
— Tenho medo.
— Estou com você, não tenha medo.
Bateram as roupas para
tirar a areia e as colocaram sobre umas palhas de coqueiro e, nus, entraram no
mar, que estava calmo e quente. A ventania já parara e aquela água quente
estava muito boa. No horizonte distante, um navio navegava em direção ao porto,
provavelmente um cargueiro vindo de bem longe. Seus tripulantes de terras
longínquas nunca poderiam imaginar que ali o mundo havia tremido por causa do
amor e que nunca mais seria o mesmo. Talvez algum marinheiro pudesse ter visto
o fogo naquela praia, mas deveria ter pensado ser uma fogueira ou algo
parecido.
André acordou cedo, seu
irmão queria levá-los para conhecer alguns locais. Ele escolheu ir então a
“casa do faroleiro”, que era a ruína de um antigo farol. Apenas as bases do
farol existiam agora, a casa do faroleiro, com suas paredes grossas de tijolos
batidos, ainda resistia totalmente abandonada pelas autoridades, num total
descaso com a História. Eram enormes paredes, e muito altas, sem portas nem
janelas; só os espaços vazios. A imaginação voava sobre quem, num tempo
distante, viveu ali, como viveu e como amou? Era um casal feliz? Quanto
sacrifício para proteger os que, naquele imenso Atlântico, navegavam bravamente.
Para chegar lá, passava-se pela igreja e pelas ruínas de
um antigo mosteiro e também pelo novo farol de concreto pintado de branco. Ao
lado, ficava uma casa também branca, onde sua moradora fez uma simples
lanchonete. Depois, uma área descampada antecedia a pequena mata, onde alguns
cães abandonados passaram a viver e se tornaram selvagens, mas que raramente
eram vistos durante o dia. Era uma depressão. Ao descer, caminhava-se um pouco
dentro dela e, após uma subida, chegava-se a “casa do faroleiro”. Do rochedo,
podia-se admirar a vasta beleza do Atlântico, com seu lindo azul profundo. De
lá, foram para o “suspiro da baleia”, onde o mar entrava por baixo das rochas.
Quando suas ondas pressionavam as águas, estas subiam sob uma pressão incrível,
esguichando por uma fenda o que imitava o “suspiro” de uma baleia.
Na volta, pararam para tomar suco de mangaba na
lanchonete do farol. Em seguida, foram visitar as ruínas do mosteiro. Sobraram
apenas os grandes arcos de tijolo batido e as antigas divisões. André não podia
entender como algo tão importante podia ser abandonado daquele jeito. Como as
autoridades podiam odiar tanto sua história, seu país e seu povo, para deixar
todo aquele patrimônio ali, se acabando. Da janela da igreja, podia-se ver o
novo farol na sua brancura contrastando com o verde da mata. Ao fundo, o azul
do mar. O mais provável é que aquela natureza seja destruída, um dia, e que
aquelas ruínas nunca sejam restauradas.
Foram jantar em um barzinho simples, de um nativo amigo
de seu irmão. O bar ficava no “vale da lua”. Na realidade, era uma casa de
taipa em que o dono colocou uma mesa grande de madeira no terreiro, embaixo das
árvores, onde servia as refeições. Se alguém vai almoçar, pode até mesmo
escolher a galinha que quer comer entre as que passeiam no terreiro. Comeram
galinha á cabidela, só não puderam escolher, pois já era noite. Conversaram
sobre poesia, pintura, música e política. O irmão de André estava trabalhando
no seu próximo livro de poemas e falaram sobre isto. Patrícia estava belíssima!
Seus olhos ficavam ainda mais verdes, sempre que pegava sol, e sua pele estava
bronzeada e algo brilhava diferente nela depois daquela noite. Estava tão
feliz, falava e sorria, conversava com a esposa do irmão de André, mas sempre
olhava para André e sorria e voltava a conversar.
André acordou no meio da noite e percebeu que Patrícia
não estava ao seu lado. Levantou-se, procurou pela casa e não a encontrou.
Ficou preocupado, pois ela tinha medo de andar só em lugares desconhecidos. E
perguntava-se: o que será que aconteceu? Súbito, viu que a janela da casa
estava aberta. Correu ao quarto do seu irmão e lhe pediu o revólver emprestado.
Seu irmão perguntou o que estava acontecendo e ele não falou. Disse que
pretendia dar uma volta e não gostaria de ir desarmado.
Quando saiu de casa, o vento soprava para um lado
estranho, em direção ao mar, no sentido do farol. Então, sem saber por que,
caminhou para lá, passou pela igreja e continuou... passou pelo farol novo e
chegou ao descampado. Então pôde ver alguém deitado. Empunhou o revólver 38,
que tinha sido de seu pai e agora era de seu irmão e foi se aproximando
devagar. Quando chegou perto, a pessoa sentou e olhou para trás: era Patrícia.
André correu em sua direção e ajoelhou-se ao seu lado. Ela estava enrolada em
um cobertor.
— Minha princesa!
— Oi, meu amor.
— O que está fazendo aqui sozinha? É perigoso!
— Não tenho mais medo.
— Não me chamou por quê?
— Você estava dormindo
tão bem, não quis te acordar.
Ela passou o braço sobre ele e o cobriu também com o cobertor.
Agora estavam sentados juntos sob o mesmo cobertor.
— Não faça mais isso. Quase me matou do coração.
Os dois ficaram ali olhando o horizonte, sendo iluminados
de tempo em tempo pela luz do farol, com suas sombras indo e vindo com a luz,
que muito longe avisava aos navegantes da presença daqueles rochedos milenares.
De súbito, viram pequenos vultos correndo mata adentro, e conseguiram ver então
os famosos cães selvagens. Um deles parou a uns vinte metros e olhou para eles.
Em seguida, o que lhes pareceu uma cadela também chegou: os dois pareciam
jovens cães. De repente, um uivo, e os cães olharam em direção deles. Parecia
um chamado e os animais sumiram na mata.
A Gravidez
A barriga crescia
rapidamente. Patrícia estava ainda mais bonita grávida. Todos os seus planos
teriam que ser antecipados, já que não esperavam ter um filho naquele momento.
Quando ela lhe falou, André ficou muito feliz: era um sonho ter um filho com
ela.
|
Nos finais de semanas, sempre iam para a Barra de Santo
Antônio, e caminhavam para o lado mais ermo da praia para que Patrícia pudesse
bronzear seus seios. E era inevitável fazerem amor. Ela estava radiante, estava
feliz, e a felicidade contagiava todos que estavam ao seu lado.
Conversou com Patrícia
sobre o primeiro filho. André sugeriu que morasse com eles, mas ela havia
conversado com o garoto, e ele resolvera continuar morando com os avós.
André sempre acompanhava Patrícia às consultas do
pré-natal. Certo dia chegou um pouco atrasado, e ela já havia entrado para
fazer a ultrassonografia. Na sala de espera, encontrou uma colega de faculdade
de Patrícia, com quem ele tinha tido um pequeno flerte, quando treinavam
natação na faculdade. Era uma moça bonita, cabelos castanhos pouco acima dos
ombros, corpo bronzeado, pernas longas e proporcionais ao seu bumbum.
— Oi, André, ficou bem de barba – disse Renata.
— Obrigado. Está trabalhando aqui?
— Estou. Já tem um bom tempo.
— Nunca a havia encontrado antes.
— É que estava de férias. Voltei há duas semanas.
— Ah! Foi por isso.
— Mas, quando voltei, soube que Patrícia estava fazendo o
pré-natal aqui. E que você sempre a acompanhava.
— É, sempre estou com ela.
— Sempre?
— Não entendi?
— Sempre, em todos os momentos? – sorriu.
— Mais ou menos – e deu um pequeno sorriso.
— Poderíamos tomar um chope.
— Não seria perigoso?
— Não! Seria prazeroso.
— Você não casou? Era noiva, não era? – pensou: não
acredito que isso está acontecendo, ela era toda séria na aula e agora...
— Sim, mas acabamos o noivado.
— Lamento.
— Eu não, ele era um otário, só pensava em carro e
dinheiro. Olhe, André, sempre me excitava quando te via na piscina, e ficava
pensando, mas tinha medo que você falasse para alguém se ficássemos juntos. Mas
agora...
— Agora tudo está diferente.
— Como estava falando, só depois soube da sua fama. Uma
amiga me falou que transou com você no laboratório de Química. Fiquei louca,
mas já não tinha mais contato com você. E fiquei com medo de pedir seu telefone
para sua cunhada e ela notar algo.
— É verdade, você trabalha com minha cunhada.
— É, mas ela não gosta muito de você. Já a ouvi falando
que você era mulherengo. Então não tive coragem.
André lembrou então que a irmã mais velha de Patrícia
trabalhava no mesmo hospital que Renata.
— Podemos ir almoçar qualquer dia no “BEM”. Tenho as
tardes de quinta-feira livres.
— Renata, você
continua linda! E muito atraente, mas...
— Vamos só conversar.
— Sabe que não sou homem de só conversar... Se fosse à
época da faculdade, mas hoje as coisas mudaram. Não estou mais assim, não sinto
vontade, não penso. Além do mais, Patrícia está grávida e estamos muito
felizes.
— Liga-me se mudar de ideia
Renata colocou um cartão no bolso de André e o beijou no
canto da boca. Olhou por sobre o ombro dele e viu quem chegava
— Oi, Patrícia, há quanto tempo?
Patrícia saía da sala por trás de André. Estava sorrindo.
André virou-se e estendeu a mão para ela, e a beijou.
—Oi Renata! Você está linda!
— Obrigada! Soube que estava aqui e vim lhe ver.
— Princesa, preciso ir? – disse André. – Renata, foi um
prazer revê-la.
— O prazer foi meu.
— Tchau, Renata – disse Patrícia.
André abraçou Patrícia e, ao sair do hospital, jogou o
cartão em uma lixeira. Patrícia viu, olhou para ele, sorriu e o beijou.
A gravidez estava muito boa e suas vidas continuaram
normais. Por isso, sempre saíam para dançar. No São João foram os noivos. A
única coisa que mudou é que Patrícia não estava bebendo por conta da gravidez,
é óbvio. André havia sido promovido após terminar sua especialização e recebera
um convite para trabalhar na FIOGRUZ, no Rio de Janeiro. Mas não aceitara, pois
pretendia viver com sua família de forma mais tranquila e tudo estava perfeito
para uma mudança desse nível.
O Parto
Estavam morando no apartamento da mãe de André. A noite estava
muito quente. Patrícia, então, abriu as janelas e, por volta da meia-noite, o
acordou.
|
— Querido, estou sentindo muitas dores.
— Quer algum remédio?
— Não. Quero que ligue para o Doutor.
— Claro. Acha que está na hora?
— Acho que não. Ainda falta um mês.
— Vou ligar para o médico?
— Sim, acho melhor.
André ligou para o médico e contou-lhe da situação de
Patrícia, informando-lhe o intervalo das dores e descrevendo-as detalhadamente.
O médico mandou que a levasse imediatamente para o hospital. André arrumou
rapidamente o que ela precisaria e saíram. No caminho, as dores aumentaram e
ele começou a ficar preocupado. Chegou ao hospital com Patrícia nos braços. As
enfermeiras já haviam sido avisadas pelo médico e a esperavam. Imediatamente a
colocaram em uma maca e a levaram. André as acompanhou.
— Não fique preocupado, querido.
— Não estou.
— Fico triste por estar te deixando assim.
— Não está.
— Boa-noite! – disse o médico. – Quer dizer que o rapaz
está com pressa?
— Boa-noite, doutor – respondeu Patrícia. – Acho que é
aperreado feito o pai.
— Vamos ver o que está acontecendo, oito meses não é
problema.
— Querido, vá comer alguma coisa – disse Patrícia.
— Não estou com fome, vou ficar aqui.
Estava demorando muito e André estava preocupado. Depois
de um bom tempo, ele procurou uma enfermeira para buscar informações. Ela então
saiu e voltou com o médico.
— Algum problema, doutor?
— Não, tudo bem, mas ela não está tendo dilatação
suficiente.
— E então?
— Vamos aguardar mais um pouco e estimulá-la para
aumentar a dilatação.
— É normal?
— Pelo tempo das contrações, era para estar com maior
dilatação, mas não faremos nada nas próximas duas horas. O senhor quer vê-la.
— Claro!
E André foi junto com o médico para vê-la.
— Meu amor! Que bom que está aqui – disse ao avistar
André.
— Como está?
— Com muitas dores.
Neste momento, ela fez uma expressão de dor.
— Esta foi grande.
— Não se aflija, meu amor – disse olhando para André. –
Vá comer alguma coisa, eu vou ficar bem.
— Quero ficar aqui.
— Não vai adiantar nada e, quando chegar a hora, vai
estar muito cansado para ficar com ela e com seu filho – disse o médico.
— Isto demora – disse a enfermeira –, são dores
preliminares.
— Vai, meu amor. Sua presença está me deixando preocupada
e quero ser uma boa mulher e ter nosso filho sem alvoroço. E não vai me ajudar
em nada aqui; vai comer alguma coisa e bebe algo também, que vai te deixar mais
tranquilo, e não se preocupe. Estou em boas mãos, vai, mas volta.
— Está bem.
— Pode ir e comer sem pressa – disse o médico –, tem um
café aqui ao lado do hospital, e já deve estar aberto.
O dia já estava
clareando. André encontrou o café rapidamente com as instruções do doutor, mas
estava vazio. Sentou-se em uma pequena mesa, e percebeu então que só havia um
senhor atendendo no balcão. Então se dirigiu a ele.
— Bom-dia, senhor!
— Bom-dia, meu jovem! O que faz a esta hora na rua?
— Minha mulher está para ter menino ali no hospital.
— Ah! Boa sorte!
— Obrigado, gostaria de comer alguma coisa, mas gostaria
também de beber algo, sei que é muito cedo...
— Mas é uma ocasião especial – interrompeu o senhor –,
tenho aqui um vinho que bebo quando as noites estão frias. Vou servi-lo com
pães e um bom queijo do sertão.
— Muito obrigado!
Bebeu o vinho e comeu pães com queijo, que estava pouco
salgado, macio e dividia-se em pequenos pedaços na boca. Tudo estava muito
gostoso, apesar de André não comer muito, mas gostava muito daquele tipo de
queijo. As ruas ainda estavam desertas. Apenas um gato perambulava pela rua,
como quem havia voltado de uma boa farra, totalmente despreocupado.
Chegou ao hospital e se dirigiu ao quarto de Patrícia.
Bateu na porta e em seguida entrou, mas estava vazio. Saiu então e encontrou
uma enfermeira que estava de plantão naquele andar, e ela o informou que sua
esposa havia ido para sala de parto, e que uma auxiliar o levaria até o local.
Quando chegou ao local, outra enfermeira lhe deu uma
roupa azul, para que ele trocasse. Só assim, poderia entrar, mas foi
interrompido pelo médico.
— Preciso dos últimos exames que ela fez no outro
hospital – disse-lhe o médico. – O senhor sabe onde se encontram?
— Sim, vou buscar imediatamente.
— Vai devagar. Está tudo bem, e preciso que chegue com
eles – brincou. – Dirija como se já estivesse com seu filho do lado, com
cuidado.
— Claro, doutor! Estou indo.
Foi rapidamente descumprindo o acordo com o doutor. Pegou
os exames e procurou a pequena garrafa portátil de uísque, mas estava vazia.
Não esperava precisar dela naquele dia, mas como poderia suportar tudo aquilo
com apenas dois copos de vinhos? Na volta para o hospital, parou e comprou uma
pequena garrafa de uísque e já começou ali mesmo a bebê-la. Ao chegar ao
hospital, entregou os exames e se preparou para entrar, vestindo as roupas
azuis que lembravam pijamas, e entrou.
— Como está princesa? – disse André.
— Não estou muito bem.
— Está tudo bem – disse o médico.
— Desculpa, meu amor! Pensei que era mais forte, mas não
estou aguentando de dor. Estou te decepcionando.
— Nunca, minha princesa! – seus olhos se encheram de
lágrimas. – Estou aqui – e apertou-lhe a mão.
Mas parecia que era ela que o apoiava. André sentiu que
suas pernas não iam suportar o peso do seu corpo; sentiu-se fraco, mas tinha
que reagir, não podia deixá-la ainda mais nervosa. Nunca tinha tido tanto medo
em sua vida antes. Beijou Patrícia na testa e disse-lhe que a amava. O médico
percebeu sua situação.
— Vamos tomar um cafezinho, meu caro. Ela está em boas
mãos.
— É, meu amor, as meninas são ótimas – disse se referindo
às enfermeiras. – Vou ficar bem.
Uma das enfermeiras
tinha sido contemporânea dele na faculdade, e o tranquilizou. Ficaria com ela,
apesar de já ter terminado seu turno, não iria perder este momento.
André saiu da sala, tomou o cafezinho com o doutor, que
voltou em seguida. Na verdade, só queria mesmo tirá-lo de lá. E explicou-lhe
que era melhor ele não assistir o parto, pois pelo que vira seria mais um para
cuidar na hora. Ele concordou, e o médico disse que explicaria para Patrícia, e
voltou.
Ele agora se lamentava. Ela estava passando por tudo isso
graças aquelas noites em Nazaré. Nunca pensou que aqueles momentos de amor e
prazer poderiam causar-lhe tanto sofrimento. Como poderia ser assim? As
lágrimas cobriam seu rosto. Como momentos de tanto prazer podiam resultar em
tanta dor? Logo ela que tinha tido uma gravidez tão tranquila, e tinha sido tão
feliz ao lado dele naqueles últimos meses. Por que tudo isso estava
acontecendo?
Viu o médico saindo e
conversando com outro e com a enfermeira conhecida de Patrícia. Em seguida se
dirigiu a ele.
— Tudo bem, doutor?
— Não muito bem. Sua mulher não está dilatando como deveria.
Vamos precisar fazer uma cesariana.
— E qual é o risco?
— De uma cirurgia, e uma recuperação mais complicada e
dolorosa.
— Desculpe-me, ela vai ficar boa?
— Sim, uma cicatriz e uma recuperação lenta.
André já estava terminando a garrafinha de uísque e se
arrependendo de só ter comprado uma. Tinha ficado mais calmo, mas esta nova
notícia o deixara novamente apreensível. Por que se preocupar, se ninguém morre
mais de parto nestes tempos? Mas, e se ela morrer! Não devia pensar assim,
deveria pensar que tudo ia dar certo. Bebeu o resto da garrafinha e perguntou
onde ficava a capela do hospital. Lá, pediu a Deus que tudo desse certo,
prometeu ser um homem melhor, e faria tudo para melhorar. Voltou então para a
sala de espera.
Só quando voltara do café foi que Patrícia pediu-lhe para
avisar sua família. Queria fazer uma surpresa, já que ninguém esperava o parto
naquele momento. Mas, com o surgimento desses problemas, ela resolvera pedir
para avisar. Então, quando André saiu da capela, a mãe de Patrícia e a irmã
Cecília já estavam na sala de espera.
— O que houve? – perguntou Cecília.
— Patrícia não queria que avisasse vocês antes do menino
nascer.
— Mas isso é um absurdo! – disse a mãe.
— Eu quis ligar, mas faço a vontade dela. E tudo que pode
ser feito está sendo.
— Você não vai entrar? – indagou Cecília.
— Não, você poderia entrar e ficar com ela, Cecília? O
médico me tirou de lá.
— Eu vou então. Mãe, a senhora fica aqui.
O tempo parecia não passar. Os minutos eram longos. Então
André pôde ver duas enfermeiras empurrando uma cama: Patrícia deitada e Cecília
do lado segurando sua mão.
— Ela está bem?
— Sim! – respondeu a enfermeira.
— Como está nosso filho? – perguntou Patrícia.
— Não o vi ainda – disse.
André olhou para Cecília e viu lágrimas em seus olhos.
As enfermeiras a
levaram por uma área exclusiva. Fizeram a volta e foram para o quarto que havia
sido preparado para Patrícia. Quando chegou, Cecília estava na porta.
— Como ela está?
— Dormindo.
— O que há com meu filho? Não ouvi o choro.
— Não sabe? – Cecília começou a chorar e o abraçou. – Ele
não sobreviveu. Lamento, André.
— Não! Meu Deus!
— Ele não sofreu, nasceu morto, e Patrícia não sabe.
Nesse momento, o alarme do plantão tocou. Uma enfermeira
e o médico correram para o quarto de Patrícia, e a levaram novamente para o
centro cirúrgico. Ela sentia dor, estava acordada e sentia muita dor no abdome.
Depois de algum tempo, lá de dentro o médico saiu e informou a todos que ela
esta com hemorragia.
— Meu Deus! – pensou. – Perdi meu filho, não posso perder
minha mulher. O que vou fazer?
— Estamos fazendo todo o possível – disse o médico. – Ela
quer vê-lo.
— Posso?
— Vamos.
— Meu amor – disse Patrícia, com voz muito fraca.
— Vai ficar boa.
— Não, meu amor! Estou morrendo. É uma pena! Ainda
tínhamos tanto o que viver.
— Não! Não vai – ele não conseguia segurar o pranto. – Eu
te amo!
— Também te amo! Mas você tem que ser forte. Cuida do
nosso filho.
— Cuidaremos, nós dois juntos.
— Será que vai ter com outra mulher tudo que vivemos?
— Nunca!
— Será que falará aquelas coisas lindas que me falava?
Será?
— Nunca! Nosso amor é único. Não fala assim, você não vai
morrer, temos muito que fazer ainda.
— Estou muito cansada, quero que saia agora e reze por
mim, para que eu tenha uma boa morte.
Patrícia suspirou e
fechou os olhos. André não podia acreditar. Ajoelhou e desabou em pranto, e uma
dor terrível invadiu seu peito. As suas vistas escureceram por um momento, mas
recuperou a visão e olhou para Patrícia. Ela não aparentava mais a fisionomia
de dor, seu rosto estava pálido, mas parecia em paz. André teve a impressão de
que ela estava dormindo. Súbito, uma luz entrou em seus olhos e ele a viu
sorrindo como no primeiro dia quando se conheceram, ainda adolescentes. Ela,
vestida de blusa branca, com aqueles olhos verdes brilhantes, estava linda!
André não voltou para o
apartamento. Fora à casa de sua mãe, e todos os seus irmãos estavam lá. Mas não
falou com ninguém. Passou direto para o quarto dos fundos, onde ele e Patrícia
fizeram amor pela primeira vez. Não pôde conter as lágrimas. Apesar de ser
outubro, caía uma chuva torrencial. Sentou na cama e olhou o vazio. A cadela
que eles resgataram na rua entrou, sentou ao seu lado e “sorriu”.
FIM
*Daniel
Barros, 45, escritor e fotógrafo alagoano residente em Brasília, é autor dos
romances O sorriso da cachorra,
Thesaurus, 2011, Enterro sem defunto, Editora LER, 2013, Coletânea Contos Eróticos e Contos Sobrenaturais Enquanto a Noite Durar editora APED,
2014. Membro da Associação Nacional dos Escritores – ANE - e do Sindicato dos
escritores do DF.
http://www.amazon.com.br/gp/search/ref=sr_nr_seeall_1?rh=k%3Ao+sorriso+da+cachorra%2Ci%3Adigital-text&keywords=o+sorriso+da+cachorra&ie=UTF8&qid=1389526372
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